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Retirado do texto "Como reconhecer a esquerda?" de António Guerreiro, no Expresso de 18.06.2011
Retirado do texto "Como reconhecer a esquerda?" de António Guerreiro, no Expresso de 18.06.2011
O pano de fundo destas considerações, não devemos omiti-lo, é o seguinte: a diferença entre direita e esquerda está hoje longe de ser tão evidente quanto foi no passado, quando se podia falar com toda a atualidade de movimento operário, de democracia de massas, do partido do proletariado, de Estados socialistas, etc. Quando as grandes figuras de invocação da esquerda ficaram reduzidas à nulidade, a partir do momento em que se deu o esvaziamento de instituições e ideologias que lhe garantiam o sentido, foi preciso reconstruir o discurso. Tarefa difícil, como temos visto, tanto mais que o triunfo à escala planetária do modelo da sociedade de consumo e de produção determinou o fim da política sem deixar entrever nenhuma nova figura da polis. A esquerda não se tem mostrado à altura da nova matéria política com que foi confrontada.
Voltemos às questões duras e pensemos no que se tem passado por cá. A causa maior da esquerda, em Portugal, tem sido a defesa de uma forte intervenção do Estado, como garantia dos direitos e das liberdades sociais. A defesa de um Estado forte foi, em tempos, uma prerrogativa da direita. Mas, ainda que percebamos o porquê desta inversão, devemos estranhar que a esquerda se tenha confinado, em termos teóricos, a uma política estatal e tenha fetichizado o Estado como substituto das categorias políticas que caducaram. Assim, quanto às políticas económicas e sociais, a única diferença entre esquerda e direita parece reduzir-se a isto: a esquerda defende que o Estado deve garantir a equidade na distribuição da riqueza; a direita defende que só haverá riqueza a distribuir na condição de se limitar o papel e a intervenção do Estado ao mínimo. Mas acordam na ideia de que é preciso produzir cada vez mais riqueza para dar emprego e bem-estar a toda a gente. Ou seja, só se distinguem nos modos de distribuição da riqueza; mas no que diz respeito à sua produção, (e ao correspondente dogma do 'crescimento') estão emcompleta sintonia. A esquerda oblitera assim tanto uma crítica do trabalho como uma crítica do regime de produção da sociedade de consumo, como se, tal como a direita democrático-liberal, considerasse esse regime uma ordem natural. Ora, as questões que hoje se colocam (entre outras razões, por imperativos ecológicos e porque os recursos não são inesgotáveis) estão também do lado da produção. E de uma maneira que não pode limitar-se a ser equacionada nos termos marxistas, opondo os detentores da força-trabalho aos detentores dos meios de produção. E assim a esquerda se foi afastando de uma política de emancipação que corresponda a um projeto eminentemente crítico.
Por outro lado, a política foi-se reduzindo, à governamentalidade.. Atos tão importantes da democracia como as eleições tornam-se uma caricatura quando já só servem uma racionalidade económico-governamental, numa lógica que já não é política, mas meramente gestionária. Muitos dirão que isso se deve ao facto de termos problemas urgentes de gestão económica e financeira que absorvem tudo o resto. Mas esse pensamento só se impôs precisamente porque a democracia ficou reduzida às questões da governação. Se as alternativas foram evacuadas pela hegemonia dominante, se se pensa que tudo é matéria de gestão — no limite, gestão da catástrofe —, então é porque se consumou uma total despolitização. A despolitização é um fenómeno moderno, como mostrou Carl Schmitt, mas alcançou o seu máximo grau quando o poder político se tornou exclusivamente uma prática de governo da economia. A tendência irresistível da máquina governamental, como já todos percebemos, é a de fazer dos cidadãos objetos passivos nas mãos e nos cálculos do Estado. A partir do momento em que a gestão burocrático-governamental domina a política, esta deixa de se basear no conflito, que está no cerne da tradição democrática, enquanto algo que não pode ser mediado e governado. Os apelos ao consenso a que temos assistido em Portugal correspondem a uma neutralização do conflito, que deixa de ter lugar na representação política. Notemos que o 'conflito' entre o PS e o PSD não é verdadeiramente um conflito político (e, portanto, também não ideológico): é um conflito doméstico, familiar — um teatro de sombras que releva da lógica da pessoalização e do carácter. O modelo da governamentalidade diz-nos que tudo tem de ser governado, gerido e normalizado; e transforma a democracia numa gestão racional, isto é, numa economia. Nesta perspetiva, esteja nas mãos da direita ou da esquerda, a máquina governamental segue imparável o seu caminho e faz o seu trabalho (daí a ideia de que a esquerda, uma vez no governo, faz uma política igual à da direita). A ideia do ‘voto útil’ inscreve-se na perspetiva de que a política deve ser anulada em favor do eficaz funcionamento da máquina. A política pressupõe sempre uma exterioridade; a governamentalidade não tem exterior.
Ora, que o modelo liberal seja um mediador de conflitos, por excelência, não admira. Mas que a esquerda tenha caído na lógica do pensamento da governamentalidade é um facto cheio de consequências — é o que a leva a transigir, sempre. Um pouco por todo o lado, é a esquerda que tem preparado os instrumentos de que a direita se serve quando chega ao poder. Transigir em tudo, conciliar tudo com o seu contrário — eis o seu programa.
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