Tuesday, August 25, 2009

Elvis Oitavo


A televisão dotada de um apreciável pacote TV Cabo a que tenho tido acesso nos últimos dias foi sintonizada com tamanha anarquia (a SIC é o canal 17, o Hollywood é o 4, etc.) que as probabilidades de encontrar qualquer coisa decente num zapping fortuito são tão desoladas como as odds da lotaria italiana. Tanto quanto pude perceber, acabei de perder uma transmissão do Tootsie (um dos melhores guiões cómicos de sempre, eu um dia explico) para ficar a ver os últimos 25 minutos do que suponho ser uma mini-série sobre a vida de Elvis Presley, em que o papel de Elvis é representado por Jonathan Rhys Meyers, um buraco negro de carisma que consegue sugar qualquer vestígio de qualidade que passe nas suas imediações para um funil cósmico.
Elvis representa a experiência quintessencial do século XX sobre fenómenos de sucesso global: uma alteração cultural geológica efectuada a cem à hora e condensada em poucos anos. O processo já é suficientemente transtornante. Condensá-lo nas poucas horas de uma mini-série é transtornante ao quadrado. Condensar essa experiência nos últimos 25 minutos de uma mini-série pode ser conducente à catalepsia. A primeira coisa que eu vi foi Elvis a disparar uma arma contra um jornal. Depois vi Elvis a comprar um carro. Depois vi Elvis a perguntar ao seu cabeleireiro Larry "O que é a verdade, Larry?". Depois vi Elvis a dizer a um grupo de amigos que Deus existe. Depois vi Elvis à procura de comprimidos ("Devem estar na casa-de-banho. Vou lá!") Depois vi Elvis a ter um filho, e a garantir a Priscilla que não gostava de ir para a cama com gajas que já tivessem tido filhos.
Um célebre momento da sua biografia é recriado (com intrigantes e desnecessárias alterações, mas vá lá). Durantes as preparações para o '68 Comeback Special, o produtor Steve Binder, ao ver Elvis rodeado com um pequeno exército de guarda-costas e penduras, apostou que ele seria capaz de sair à rua sem protecção, porque ninguém o reconheceria. A mini-série mostra um estupefacto Elvis a percorrer Sunset Boulevard perante a indiferença geral de uma multidão de hippies, sintonizados numa onda alternativa. A história é boa (e melhor contada aqui), mas há que colocar a hipótese de a multidão de hippies se ter limitado a pensar que não valia a pena arrancar os cabelos e entrar em parafuso só porque estava ali a passar o Jonathan Rhys-Meyers
Rhys Meyers já tinha interpretado o papel de Henrique VIII como se Henrique VIII fosse o Joaquin Phoenix, e agora interpretou o papel de Elvis Presley como se o Rei do Rock fosse um Robbie Williams anoréxico e atarantado, a estremecer no palco à espera que os restantes Take That se materializem à sua volta. Se Elvis tivesse aquele aspecto, francamente, nunca teria sido Elvis: teria sido apenas Jonathan Rhys-Meyers.
(Interlúdio homoerótico: o rosto de Elvis não correspondia rigorosamente às noções clássicas de beleza masculina. Na verdade pode dizer-se que Elvis, juntamente com Brando, inventou as noções modernas de beleza masculina. Elvis tinha o rosto de uma estátua grega injectada com colagénio e depois esmurrada repetidamente em todos os sítios certos. O rosto de Rhys-Meyers não é clássico, nem moderno, nem sequer pós-moderno. É apático. Não se passa nada. Tem aquele ar permanentemente espantado, com boquinha indignada, e sobrancelhas vegetarianas, de quem abre o frigorífico a meio da noite para descobrir que se acabaram os espargos. Fim de interlúdio homoerótico).
A última sequência mostra um Elvis VIII sozinho no palco com um backdrop de néon, vestido de branco, com a poupa já na sua fase agnóstica, os ombros a tremer, os olhos esbugalhados, a balbuciar o «If I Can Dream» como se fosse o Demis Roussos. Só que o Demis Roussos não teria feito pior. O Dustin Hoffman vestido de Dorothy não teria feito pior. Eu próprio, mesmo tendo de me levantar às 9:10 para ir jogar ténis de praia, não teria feito pior.

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