Sunday, May 29, 2011

O Estado c'est moi

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Na terça-feira, Pedro Passos Coelho lamentou as nomeações efectuadas em desespero pelo Governo dito em gestão e o eng. Sócrates confessou-se ofendido. Na quarta-feira, Passos Coelho aludiu à cosmética aplicada aos dados da execução orçamental e o eng. Sócrates confessou-se indignado. Na quinta-feira, Passos Coelho aliviou-se de um comentário sobre a lei do aborto e o eng. Sócrates confessou-se chocado. Na sexta-feira, Passos Coelho pediu esclarecimentos acerca das divergências entre o acordo assinado com a troika e o acordo com a troika anunciado. À hora a que escrevo, ignoro se o eng. Sócrates se confessou magoado, tristonho, amuado, revoltado, sorumbático ou destroçado.

Não importa. Importa que à conta das indignações e choques do Chefe Supremo, atitudes que teriam sido mais adequadas à desgraça para que empurrou as contas públicas nos últimos anos, o PS lá vai levando a campanha sem justificar a desgraça nem se atrasar nas sondagens. De norte a sul, os socialistas repetem querer discutir os verdadeiros problemas do país. Na prática, porém, limitam-se a divulgar os estados de alma do eng. Sócrates.

O truque não é inédito, e começo a achar que talvez não seja deliberado. Quando o eng. Sócrates afirma que criticar o seu desempenho equivale a insultar dez milhões de portugueses, é possível que misture sincera e genuinamente ambas as instâncias. Quando o eng. Sócrates reduz uma eleição decisiva para o futuro desses dez milhões de portugueses a uma exibição de sentimentos íntimos, é possível estar mesmo convencido de que tais sentimentos possuem uma dimensão partilhável por todos. O Estado é ele? Aparentemente, ele e um séquito de fiéis assim o julgam, e o empenho dos media em conferir estatuto de notícia (e, às vezes, de manchete) a cada angústia do eng. Sócrates ajuda a manter a ilusão.

Em qualquer democracia, há a tendência para o partido no poder se confundir com a população em peso. Não me lembro de outro caso democrático em que se confunda a população em peso com um único homem. É quase como se Portugal andasse bem desde que o eng. Sócrates ande bem, um exagero e, ao que se tem visto, um brutal equívoco: a relação é exactamente a inversa. Entretanto, as propostas, dúvidas e críticas de Passos Coelho caíram no esquecimento dez minutos depois de proferidas, não porque não eram pertinentes, mas porque insistir nelas perturbaria o eng. Sócrates, logo o país, logo a harmonia do cosmos. Deus nos livre, se no curioso mundo do eng. Sócrates Deus não for uma redundância …

ALBERTO GONÇALVES no DN

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