O “Épico Bíblico” é um gosto minoritário, mas permanente. Adquirido na infância, agarra-nos para a vida inteira; só os felizardos conseguem uma desintoxicação eficaz em adultos. Os junkies vão alimentando a obsessão e acabam por abandonar qualquer padrão qualitativo; nas quadras festivas, o menor vestígio televisivo de túnicas ou sandálias provoca salivação imediata.
Na posse desta informação, gerações de produtores dedicaram as suas carreiras a testar os limites do bom senso, e a tentar conceber um produto rigorosamente intragável. Os Dez Mandamentos, mini-série que a TVI transmitiu na Sexta-feira Santa, foi um esforço apreciável nesse sentido. Trabalhando sob a ilustre sombra de DeMille, os responsáveis não tiveram outro remédio senão descer a fasquia abaixo da crosta terrestre. O mercado foi vasculhado à procura dos piores actores disponíveis; estivadores desempregados encarregaram-se dos efeitos especiais; chimpanzés em cativeiro foram fechados numa cave com máquinas de escrever até produzirem um guião consensualmente lamentável. Nada foi deixado ao acaso. Ainda assim, é com prazer que anuncio o fracasso do projecto: cinco horas de sublime incompetência não foram suficientes para me fazer desligar o aparelho e abrir um livro. Ainda não foi desta que a televisão ganhou uma batalha comigo; eles são fracos, eu sou muito mais fraco.
Os rudimentos do enredo são estabelecidos logo de início, para benefício dos neófitos. O Faraó do Egipto e um grupo de trabalhadores hebraicos não-assalariados estão envolvidos numa feroz disputa laboral sobre a posse dos meios de produção. Não há solução à vista. O elenco é submetido a uma cuidadosa estenografia visual, para que ninguém se perca nas profundidades da trama: o Faraó e os seus sacerdotes parecem adeptos de futebol ingleses com os olhos besuntados de kohl; a princesa e as suas cortesãs são todas clones de Eva Longoria; as crianças egípcias foram repescadas de um teledisco perdido dos Soft Cell; os escravos hebraicos têm todo o aspecto de figurantes judeus a receber o salário mínimo; e o Moisés menos semita da história dos épicos bíblicos parece um oficial das SS depois de um dia cansativo no escritório. Devidamente identificados, os intervenientes lançam-se em complexas rondas negociais. Torna-se rapidamente aparente que Moisés não está nada contente com a situação. O seu semblante atormentado traduz empatia com a dor dos trabalhadores. Desencantado com o sisudo conforto do palácio, inicia uma escalada revolucionária, que culmina num gesto irreflectido, seguido de fuga e exílio.
A travessia do deserto é dura: Moisés perde o manto real, as peúgas reais, e o cromado teutónico. Quando finalmente chega ao oásis já ostenta a barba cuidadosamente aparada indicativa de semanas de privação; e já é tão incontornavelmente judeu que até se dá ao luxo de gracejar (o único gracejo voluntário ao longo de 360 minutos). A sua rotina de “Homem-atormentado-com-passado-misterioso” é um grande sucesso no oásis: meia-hora depois de ter chegado, já o patriarca local lhe está a oferecer a filha mais velha. Moisés casa-se, e pasta umas ovelhas, atormentadamente. Mas continua a não estar nada contente com a situação e, quando chega a noite, lança olhares misteriosos à montanha.
“Não subas à montanha! Está amaldiçoada!”, diz-lhe a esposa. Na sequência seguinte, evidentemente, Moisés sobe à montanha e entabula um frutuoso diálogo com um Efeito Especial. O Efeito Especial sussurra-lhe coisas, com rouquidão de linha erótica: “Pega no teu cajado, Moisés. Pega-lhe.” Moisés pega no cajado, atormentadamente.
É estabelecido que o Efeito Especial tem toda uma série de ideias sobre a disputa laboral no Egípcio, e que Moisés foi escolhido como seu porta-voz. Regressado ao palácio, Moisés inicia as negociações com exigências que fariam corar os mais arrojados líderes da CGTP. Implementando a estratégia delineada pelo Efeito Especial, promete represálias apocalípticas: em vez de protestos e paralisações gerais, o patronato pode esperar olhares atormentados e fenómenos atmosféricos. O Faraó, envergando mais quilos de maquilhagem do que todas as Evas Longorias do palácio, limita-se a abanar a cabeça: “Que Efeito Especial é esse de que falas? Onde é que ele está?”. Moisés fita-o em silêncio, atormentadamente.
As negociações prosseguem, sem grandes cedências de parte a parte. “Queremos ouro e prata” exige o representante Moisés. “Queremos cabras”, “queremos leite”, “queremos chicotadas indexadas à inflacção”. Entretanto, a água transforma-se em sangria, há insectos por todos os lados, e um fogo-de-artifício corre espectacularmente mal; são as pragas do Efeito Especial, mas podia perfeitamente ser a descrição de uma viagem de finalistas a Loretta del Mar. Quando o Faraó dá finalmente o seu consentimento à emancipação do problemático bando de proletários, o espectador já não consegue disfarçar uma certa simpatia com o patronato. A velocidade com que a plebe segue Moisés a caminho do deserto deixa a dúvida no ar: será que se pisgaram com a cutelaria?
A viagem para a Terra Prometida é longa e árdua, e os proletários não param de azucrinar um Moisés cada vez mais impaciente com perguntinhas infantis (“Where are you leading us?”, “How will we survive?”, “Are we there yet? Are we there yet?”). A intervalos regulares, para manter a ordem entre a ralé, Moisés é forçado a pegar no seu cajado, atormentadamente, e a transformar petróleo em água.
Entretanto, no Egipto, o patronato dá pela falta do serviço de jantar e lança-se numa louca perseguição pelo deserto, culminando numa insólita competição de mergulho no Mar dos Papiros (os proletários ganham por voto unânime do júri).
Os anos passam, a Terra Prometida não se materializa, e Moisés tem cada vez mais dificuldades em manter o proletariado sob controlo: à mínima distracção sua, desatam a idolatrar gado caprino. O que fazer? Depois de uma longa ausência, o Efeito Especial regressa, envergando a sua sensual voz de gripe: “Do you remember me, Moses? Do you recognize my voice? Can you guess what I'm wearing?” Uma última reunião de trabalho é convocada, mais uma vez no topo da montanha. O Efeito Especial substitui o antigo código de trabalho por dez resplandecentes alíneas, novinhas em folha. Lá em baixo, em ambiente festivo, os proletários desobedecem alegremente a todas elas. O Efeito Especial ordena a punição dos infractores através de um processo disciplinar conhecido como “chacina”. Os anos passam. Moisés envelhece, atormentadamente. Nos seus últimos dias, é-lhe concedida a oportunidade de vislumbrar a Terra Prometida: uns patéticos hectares de terra, repletos de vegetação rasteira e membros do Hezbollah. Rolam os créditos.
Já só faltam nove meses para o Natal.
Na posse desta informação, gerações de produtores dedicaram as suas carreiras a testar os limites do bom senso, e a tentar conceber um produto rigorosamente intragável. Os Dez Mandamentos, mini-série que a TVI transmitiu na Sexta-feira Santa, foi um esforço apreciável nesse sentido. Trabalhando sob a ilustre sombra de DeMille, os responsáveis não tiveram outro remédio senão descer a fasquia abaixo da crosta terrestre. O mercado foi vasculhado à procura dos piores actores disponíveis; estivadores desempregados encarregaram-se dos efeitos especiais; chimpanzés em cativeiro foram fechados numa cave com máquinas de escrever até produzirem um guião consensualmente lamentável. Nada foi deixado ao acaso. Ainda assim, é com prazer que anuncio o fracasso do projecto: cinco horas de sublime incompetência não foram suficientes para me fazer desligar o aparelho e abrir um livro. Ainda não foi desta que a televisão ganhou uma batalha comigo; eles são fracos, eu sou muito mais fraco.
Os rudimentos do enredo são estabelecidos logo de início, para benefício dos neófitos. O Faraó do Egipto e um grupo de trabalhadores hebraicos não-assalariados estão envolvidos numa feroz disputa laboral sobre a posse dos meios de produção. Não há solução à vista. O elenco é submetido a uma cuidadosa estenografia visual, para que ninguém se perca nas profundidades da trama: o Faraó e os seus sacerdotes parecem adeptos de futebol ingleses com os olhos besuntados de kohl; a princesa e as suas cortesãs são todas clones de Eva Longoria; as crianças egípcias foram repescadas de um teledisco perdido dos Soft Cell; os escravos hebraicos têm todo o aspecto de figurantes judeus a receber o salário mínimo; e o Moisés menos semita da história dos épicos bíblicos parece um oficial das SS depois de um dia cansativo no escritório. Devidamente identificados, os intervenientes lançam-se em complexas rondas negociais. Torna-se rapidamente aparente que Moisés não está nada contente com a situação. O seu semblante atormentado traduz empatia com a dor dos trabalhadores. Desencantado com o sisudo conforto do palácio, inicia uma escalada revolucionária, que culmina num gesto irreflectido, seguido de fuga e exílio.
A travessia do deserto é dura: Moisés perde o manto real, as peúgas reais, e o cromado teutónico. Quando finalmente chega ao oásis já ostenta a barba cuidadosamente aparada indicativa de semanas de privação; e já é tão incontornavelmente judeu que até se dá ao luxo de gracejar (o único gracejo voluntário ao longo de 360 minutos). A sua rotina de “Homem-atormentado-com-passado-misterioso” é um grande sucesso no oásis: meia-hora depois de ter chegado, já o patriarca local lhe está a oferecer a filha mais velha. Moisés casa-se, e pasta umas ovelhas, atormentadamente. Mas continua a não estar nada contente com a situação e, quando chega a noite, lança olhares misteriosos à montanha.
“Não subas à montanha! Está amaldiçoada!”, diz-lhe a esposa. Na sequência seguinte, evidentemente, Moisés sobe à montanha e entabula um frutuoso diálogo com um Efeito Especial. O Efeito Especial sussurra-lhe coisas, com rouquidão de linha erótica: “Pega no teu cajado, Moisés. Pega-lhe.” Moisés pega no cajado, atormentadamente.
É estabelecido que o Efeito Especial tem toda uma série de ideias sobre a disputa laboral no Egípcio, e que Moisés foi escolhido como seu porta-voz. Regressado ao palácio, Moisés inicia as negociações com exigências que fariam corar os mais arrojados líderes da CGTP. Implementando a estratégia delineada pelo Efeito Especial, promete represálias apocalípticas: em vez de protestos e paralisações gerais, o patronato pode esperar olhares atormentados e fenómenos atmosféricos. O Faraó, envergando mais quilos de maquilhagem do que todas as Evas Longorias do palácio, limita-se a abanar a cabeça: “Que Efeito Especial é esse de que falas? Onde é que ele está?”. Moisés fita-o em silêncio, atormentadamente.
As negociações prosseguem, sem grandes cedências de parte a parte. “Queremos ouro e prata” exige o representante Moisés. “Queremos cabras”, “queremos leite”, “queremos chicotadas indexadas à inflacção”. Entretanto, a água transforma-se em sangria, há insectos por todos os lados, e um fogo-de-artifício corre espectacularmente mal; são as pragas do Efeito Especial, mas podia perfeitamente ser a descrição de uma viagem de finalistas a Loretta del Mar. Quando o Faraó dá finalmente o seu consentimento à emancipação do problemático bando de proletários, o espectador já não consegue disfarçar uma certa simpatia com o patronato. A velocidade com que a plebe segue Moisés a caminho do deserto deixa a dúvida no ar: será que se pisgaram com a cutelaria?
A viagem para a Terra Prometida é longa e árdua, e os proletários não param de azucrinar um Moisés cada vez mais impaciente com perguntinhas infantis (“Where are you leading us?”, “How will we survive?”, “Are we there yet? Are we there yet?”). A intervalos regulares, para manter a ordem entre a ralé, Moisés é forçado a pegar no seu cajado, atormentadamente, e a transformar petróleo em água.
Entretanto, no Egipto, o patronato dá pela falta do serviço de jantar e lança-se numa louca perseguição pelo deserto, culminando numa insólita competição de mergulho no Mar dos Papiros (os proletários ganham por voto unânime do júri).
Os anos passam, a Terra Prometida não se materializa, e Moisés tem cada vez mais dificuldades em manter o proletariado sob controlo: à mínima distracção sua, desatam a idolatrar gado caprino. O que fazer? Depois de uma longa ausência, o Efeito Especial regressa, envergando a sua sensual voz de gripe: “Do you remember me, Moses? Do you recognize my voice? Can you guess what I'm wearing?” Uma última reunião de trabalho é convocada, mais uma vez no topo da montanha. O Efeito Especial substitui o antigo código de trabalho por dez resplandecentes alíneas, novinhas em folha. Lá em baixo, em ambiente festivo, os proletários desobedecem alegremente a todas elas. O Efeito Especial ordena a punição dos infractores através de um processo disciplinar conhecido como “chacina”. Os anos passam. Moisés envelhece, atormentadamente. Nos seus últimos dias, é-lhe concedida a oportunidade de vislumbrar a Terra Prometida: uns patéticos hectares de terra, repletos de vegetação rasteira e membros do Hezbollah. Rolam os créditos.
Já só faltam nove meses para o Natal.
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