O Sérgio Lavos acusa-me de ter falhado uma corrente. A ser verdade - e vou precisar de provas, exames ADN, etc. - isto vai obrigar-me a repensar toda uma série de coisas. É que eu gosto imenso de correntes e nunca me lembro de ter olhado para uma corrente e pensado, "olha que chatice, uma corrente". Até esta, da página 161; acho tudo espectacular, pelo que não me importo nada de responder outra vez (a corrente já tinha andado a circular há coisa de um ano, não sei se alguém se lembra).
Ora eu ando a ler dois livros ao mesmo tempo, uma vez que sou um grande maluco e apenas um de cada vez não me chega. Os livros que ando a ler ao mesmo tempo são o Trópico de Câncer e o Trópico de Capricórnio, ambos escritos por um autor que, curiosamente, também era um grande maluco para quem uma de cada vez simplesmente não chegava. A quinta frase completa da página 161 do Trópico de Câncer é: «Um tipo conhece os bêbados todos de Montparnasse». Para o Trópico de Capricórnio, o resultado é: «Tudo podia ser afastado facilmente, até os Himalaias».
Os restos dos respectivos livros contêm frases tão ou mais titilantes. É tudo a cem à hora, nos Trópicos. A estética literária de Henry Miller exige a substituição deliberada de sofisticação artística por autenticidade crua. O insanável defeito deste tipo de escrita torrencial (Whitman e Kerouac são duas encomendas semelhantes) é que o desleixo e a falta de clareza criam uma dissonância entre o ritmo do escritor - que se acha o maior - e o do leitor - que nem sempre concorda. Os frequentes achaques de levitação induzem uma irreprimível vontade de discordar factualmente do que está a ser dito: “Esta é a virgindade branca e glacial da lógica do amor” (Epá, não, não é). “Sou o gorila que sente as asas a crescerem, sou o gorila leviano no ventro de um vazio de cetim” (Epá, não, não és). “A noite também cresce como uma planta eléctrica, lançando rebentos candentes para o espaço” (Não, a noite não faz nada disso).
Na verdade, a relação de Henry Miller com a linguagem é semelhante à sua relação com o género feminino. O homem dispara em todas as direcções. Tenta tantas coisas tantas vezes que acaba por acertar no alvo algumas delas. Trata a linguagem como se esta fosse uma ginasta romena. E, apesar de todo o seu priápico e transpirado entusiasmo, a linguagem fica quase sempre hirta debaixo dele, a fingir orgasmos múltiplos.
Poderia continuar a falar sobre o assunto, mas prefiro guardar o resto para o meu longo texto crítico sobre Henry Miller, a publicar brevemente no Scunthorpe Telegraph. E porque nestas alturas de crise as pessoas gostam é de finais felizes, vou terminar o post com um gatinho dentro de uma caixa.
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