Sunday, March 1, 2009

Suction with Valchek



Tem sido extremamente difícil nos últimos dias não passar o tempo a chatear as pessoas com a minha recém-adquirida destreza no calão de Baltimore. Com o atraso espectacular que costuma caracterizar grande parte das minhas interacções com o mundo (exemplificado pelo absurdo número de emails a informar-me de que fui a última pessoa em Portugal continental a dizer bem do Lourenço Viegas) comecei esta semana a ver episódios da "melhor série de televisão de todos os tempos". Ainda é cedo para a apreciação global e fundamentada que a minha mãe se habituou a esperar de mim, mas creio não espatifar nenhum consenso se disser que a segunda melhor personagem da série é o Coronel Daniels, um Masai tecnocrata interpretado por um actor que tem provavelmente a melhor cara de todos os tempos a seguir à do Franck Ribéry, e que elevou o acto de remover o casaco exasperadamente a uma manifestação artística pela qual valia a pena dinamitar a Tate Gallery.
Só para ficar mais descansado, transformei o visionamento dos quatro primeiros episódios numa desesperada caça ao cliché. Não tive grande sucesso. A língua inglesa é claramente a actriz principal, mas vê-se que passou anos a treinar para isto. Está mais gorda, mas ganhou agilidade; consegue saltar por cima das coisas; consegue esconder-se atrás de outras coisas; é tudo muito bonito. O espremido livro de estilo do police procedural também foi brutalmente vandalizado. Há algum fervor antropófago na sequência em que o McNulty vai ver um jogo de futebol do filho e conversa sobre direitos de visita com a ex-mulher, mas regra geral os guiões têm-se comportado como se a televisão tivesse sido inventada ontem à tarde. Há uma enorme vala comum no meio daquilo tudo onde as convenções foram enterradas: os guiões limitam-se a ir lá de vez em quando para mijar em cima dos cadáveres.
Está mais do que decidido que nunca mais vou ter uma "opinião" sobre qualquer outra coisa durante o resto da minha vida, mas, evidentemente, uma pessoa tem saudades de clichés, pelo que foi uma sorte ter feito uma pausa nas festividades para fazer um micro-zapping pelos canais terráqueos, no meio do qual apanhei um dos Casos da Vida transmitido pela TVI, intitulado "Crime e Botox".
"Crime e Botox", curiosamente, é o nome de uma pequena peça em três actos que eu escrevi em 2004 e que transporto desde então na minha mochila, à espera do dia em que os meus frequentes encontros com figuras públicas nas ruas de Lisboa (é inacreditável a quantidade de vezes que já estive atrás do Carmona Rodrigues na fila para o multibanco) me proporcionem finalmente a oportunidade de passar as cento e oitenta páginas para as mãos do Diogo Infante, que eu "visualizo" no papel principal e também no orçamental.
A minha peça, no entanto, é um mero divertimento - daqueles assim despretensiosos e para a toda a família. Já a versão da TVI é uma arrojada variação sobre o mito de Pigmalião, que alardeia o seu despudor em relação ao facto de ter conseguido plagiar em simultâneo o Bernard Shaw, o Nip/Tuck, o Instinto Fatal, e o Apocalipse de São João.
A história começa com uma ex-actriz dos Morangos com Açúcar no bloco pós-operatório. A cirurgia plástica correu bem, mas os resultados não lhe agradam. O seu estado emocional é cintilantemente traduzido: «Ó Zé! Não era nada disto que eu te tinha pedido!». O "Zé", além de ser seu marido, também é um cirurgião-plástico diabético, um artifício narrativo que permite aos argumentistas utilizarem uma estrutura formal composta por versos perdidos de Daniel Maia-Pinto Rodrigues: «Há séculos que não jogas golfe, querido», «Amparo! Traga-me imediatamente um copo de água com açúcar!», e «Vá, toma lá a insulina para irmos jantar».
O espectador depressa se apercebe que o cirurgião-plástico diabético anda a testar os nervos da esposa («Essa tua obsessão pela perfeição está a ir longe de mais!») e que a esposa do cirurgião-plástico diabético anda a testar os limites da sintaxe («Tu tens é noção de falta do ridículo!»), mas tudo é facilmente ultrapassável por todos aqueles que não tenham sentido de falta de humor. A primeira parte, como espero ter tornado espatafurdiamente óbvio, é uma lenta versão hardcore do My Fair Lady («ele esculpiu-me a seu belo prazer», etc.). Mas a segunda parte é nada mais nada menos do que um pioneiríssimo CSI: Vialonga, com inspectores a afagarem paredes com escovinhas, a guardarem colheres de sobremesa em sacos de plástico, e a enviarem coisas "para o laboratório". Um dos inspectores possuiu a argúcia de Auguste Dupin e o registo emocional de Ivan Drago. Depois de ouvir que a vítima, na véspera de ser assassinado, recebera um telefonema anónimo que o fizera sair de casa a correr, ele raciocina em voz alta, com o instinto dos predestinados: «Sim, realmente ísso é estranho». Nesta altura já existem pelo menos quatro suspeitos diferentes para o assassinato do cirurgião-plástico diabético, e um dos diálogos entre os argumentistas foi acidentalmente incluído no produto final: «-Porque é que não tiramos umas férias? -Umas férias não vão resolver isto».
Não vi até ao fim, mas desconfio que foi a mulher quem o matou - provavelmente com uma dose de leite condensado. Entretanto, deixo-vos com três minutos de Shakespeare na Cova da Moura:

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