Atrevi-me a ler Pessoa comum no seu tempo. Memórias de um médio-burguês de Lisboa na segunda metade do século XX, de João Freire (Edições Afrontamento). São cerca de seiscentas páginas, com letra pequena, com milhares de notas ainda mais pequenas. Tinha lido no Público a crítica de Pacheco Pereira e depois o post mais desenvolvido no seu blog (17/06/07). Era uma crítica bastante favorável, sobre um autor que eu desconhecia completamente, que me pareceu suficientemente motivadora para comprar o livro e me dispor a lê-lo.
O que é espantoso neste livro é que alguém gaste páginas e páginas a enumerar a sua família, com árvore genealógica e tudo, os amigos dos pais e da família e depois, ao longo do livro as centenas de pessoas com quem foi convivendo. Diria eu, que sou biólogo, que é um trabalho de entomologista que tudo regista e classifica.
Mas façamos um pequeno apanhado do seu percurso de vida para melhor compreendermos a personagem. Nasce em Lisboa, frequenta o Colégio Militar, tira o curso de oficial de marinha, é depois enviado para as colónias, deserta e vai para Paris onde chega um pouco antes do Maio de 68. Colabora nos “Cadernos de Circunstância”, publicação esquerdista editada em França por portugueses exilados, licencia-se em sociologia em Paris, enquanto trabalha numa fábrica. Adere ao anarquismo e vem para Portugal no pós-25 de Abril, passando a leccionar no ISCTE, onde se doutora num tema relacionado com o anarquismo. Enquanto estudante e oficial de marinha é praticante de esgrima com algum sucesso.
Introduzindo um toque pessoal neste post, direi que o autor é praticamente da minha idade, nasceu em 1942 e eu em 43, na mesma maternidade, o que nos torna naturais da freguesia do Socorro, em Lisboa, e acabámos por morar na Graça na nossa juventude, eu numa rua perpendicular à Afonso Domingues, localizada ao fundo de Sapadores e ele, num prédio de família, ao cimo da Angelina Vidal. O mais interessante é que entre os meus 14 ou 15 anos e os 25 ou 26 reuni-me ao fim da tarde, fizesse sol ou chuva, com um grupo de amigos, de que fazia parte o escritor Mário de Carvalho – que o autor cita porque ouviu uma entrevista daquele escritor na TSF a propósito daquele bairro –, quer num gradeamento localizado ao cimo da sua rua, quando o eléctrico dava a curva e abrandava para entrar na rua da Graça, ou então em frente, perto de uma banca de jornais. Percebe-se que o autor não andou, como nós, na sua adolescência pelas ruas daquele bairro, pois era interno do Colégio Militar, senão teria falado com outro carinho do cinema Royal que todos nós frequentávamos e que começava às 15h15m, um quarto de hora mais tarde que os outros cinemas de “reprise”, para absorver a malta do Gil Vicente, que saía às 15h10m.
Quando descreve o seu bairro esquece-se de falar no Cine Oriente, que ficava entre a Penha de França e o início da General Roçadas, numa ruela que penso que já não existe. Apesar de o referir mais à frente, no ponto 5, sobre Vida Social e Práticas Culturais.
Posso dizer que foi com grande revivalismo e muita saudade que li pois o ponto 2, dedicado a O Bairro e a Cidade. Qualquer deles integrado no Capítulo I, O meio Familiar.
Para terminar estas recordações, e sendo eu um apaixonado pelo cinema e cineclubista à época, não posso deixar em claro a opinião do autor que começou a dessacralizar os “doutos especialistas” (refere-se aos críticos de cinema) quando viu nas páginas de “uma revista cultural de prestígio” o filme O desporto favorito dos homens (1964) ser classificado por um crítico como o pior filme do ano e por outro como o melhor. Não sabe o autor, porque isso provavelmente não lhe interessava na altura, que para certo críticos, leitores do Cahiers do Cinéma, e que seguiam à risca a “política de autores” praticada de forma terrorista por aquela revista, Howard Hawks, o realizador do filme, era um dos seus eleitos, porque filmava ao nível do olhar, enquanto que para outros, provavelmente de esquerda, aquele realizador não “reflectia” a realidade americana. Provavelmente, se o autor tivesse esta chave, outra teria sido a sua visão niilista sobre os críticos.
As partes mais interessantes destas memórias são sem dúvida as que se referem ao seu percurso pessoal, principalmente a sua participação na guerra colonial, ainda que embarcado num navio, a sua deserção – parece-me, no entanto, que a tomada progressiva de consciência sobre a guerra e a sua motivação para desertar não estão muito bem explicadas –, a sua chegada a Paris, ainda a tempo do Maio de 68, a escolha do anarquismo, no supermercado das ideologias, na expressão feliz utilizada pelo autor, e por fim a sua vinda para Portugal e a sua participação no final da Revolução.
Antes de entrar na crítica à parte política propriamente dita gostaria de referir que, de entre as centenas, provavelmente dos milhares, de nomes citados, haveria de haver alguns que, por diferentes razões, são meus conhecidos. Assim, sou amigo do José Alberto Manso Pinheiro desde provavelmente a mesma altura em que o autor o conheceu na esgrima e que compartilhava, com alguns dos que se reuniam ao cima da Angelina Vidal, a mesma militância no PCP, ainda nos tempos da clandestinidade, coisa que muito deve irritar o autor.
Outro dos citados é o Gabriel Mourato, que fazia parte, segundo o autor, de uma facção anarquista denominada Acção Directa. O Gabriel parava na Paiva Couceiro, num café chamado Chaimite, frequentado igualmente por alguns dos que paravam ao cima da Angelina Vidal. Tinha sido membro do PCP e foi preso na leva de estudantes de 64/65. Falou na prisão como a maioria, passando depois a ter atitudes muito provocadoras para a época. Provavelmente o dono deste Blog, o Fernando Penim Redondo, que frequentava assiduamente o Chaimite, deve saber mais histórias dele do que eu. Já no final dos anos 90 fui encontrá-lo numa casa ocupada, acção em que um familiar meu participou, sendo-me referenciado como um velho e grande anarquista. Deu-me vontade de rir, eu que conhecia o passado da personagem, não o da “Acção Directa”, mas sim as suas atitudes provocadoras e sempre conspirativas. Infelizmente já morreu.
É também referido, como um mau carácter e um ortodoxo do PCP, alguém que foi aluno do autor e que lhe teria feito umas partidas, o João Fernandes, que eu penso ser o João Viegas Fernandes. Este, conheci-o na praia da Manta Rota, há muitos anos (40 anos?). Tivemos, naquela praia, um forte convívio no pós 25 de Abril com um grupo de comunistas franceses do meio operário, que, por recomendação do seu Partido, vinham passar férias a Portugal para ajudar com divisas a nossa Revolução. Penso que, na altura em que foi aluno do autor, era trabalhador-estudante, dado que estava vinculado à função pública. Hoje, para descanso do autor já não é membro do PCP, apesar de ainda ser de esquerda.
Quanto às opiniões políticas manifestadas pelo autor, são de um modo geral opostas às minhas, apesar de lhe reconhecer uma grande honestidade moral ao desertar da Marinha por não concordar com a guerra colonial.
Enquanto o tal grupo que se reunia ao cimo da Angelina Vidal fazia o seu percurso político de apoiantes do Humberto Delgado (a quem chamávamos o "nosso homem” para não levantar suspeitas), no meu caso com 14, 15 anos de idade, a membros do PCP, numa época em que isso acarretava prisão e tortura – o que sucedeu, por exemplo, com Mário de Carvalho, que resistiu á tortura do sono para não denunciar os companheiros –, o nosso autor estava a estudar no Colégio Militar e tirava o curso de oficial de marinha. São percursos que tiveram de certeza implicações na formação e opções ideológicas de cada um. Assim, ao desembarcar em Paris, com resultado de uma decisão moral importante, mas virgem relativamente às grandes ideologias de esquerda suas contemporâneas e ao escolher no supermercado das mesmas o anarquismo, opta por uma das mais minoritárias, contraditórias e hoje absolutamente incomestível. O autor, presentemente com um claro perfil anti-esquerda, pelo menos à esquerda do Sócrates, valoriza excessivamente os velhos anarquistas, herdeiros do anarco-sindicalismo do início do século XX, que são porventura personagens simpáticas, mas que foram incapazes de compreender o advento do fascismo e de resistir à sua repressão; mas critica fortemente o grupo nacional denominado Acção Directa, como também, e com razão, todos aqueles movimentos estrangeiros que enveredaram ou apoiaram o terrorismo. Conhecendo hoje o tipo de actuação dos anarquistas (veja-se as suas intervenções nas manifestações anti-globalização ou até mais recentemente na que promoveram no dia 25 de Abril) só com uma grande força argumentativa se consegue separar os bons dos maus anarquistas e continuar, apesar de se ser direita em quase tudo, a não votar em nenhum dos partidos do arco político português, porque como bom anarquista não se reconhece nesses métodos de escolha dos governantes.
Há em todo o livro uma fúria anti-comunista, que em dado passo tenta separar as massas ignaras dos seus dirigentes, esses cúmplices de todos os horrores conhecidos. Parece-me que o autor bem gostaria de retomar os velho epíteto com que o MRRP apelidou o PCP nos anos quentes do PREC, denominando-o de social-fascista. Eu que escrevi um texto e que o publiquei aqui (Julho de 2007) sobre o desvio esquerdista da Internacional Comunista, em que os seus dirigentes denominavam a social-democracia como social-fascismo, fico deveras incomodado com este sectarismo que ainda afecta alguns “esquerdistas” serôdios, que nada compreenderam sobre a evolução dos tempos.
É evidente que sobre o PCP, o dito “campo socialista” e o movimento comunista internacional muitas coisa há para criticar, denunciar e discutir, mas os termos em que estes assuntos são abordados no livro tornam impossível qualquer troca de impressões saudável. É este, quanto a mim, o seu maior defeito.
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