Monday, November 9, 2009

20 anos depois - "Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos"



Era precisamente a noção do que era andar em liberdade e poder passar o Muro que dava a Freitas Branco a consciência exacta da situação vivida pela generalidade da população de Berlim: a separação absoluta. "A cortina de ferro existia, de facto. Para quem se deslocava a pé, o ponto de passagem de fronteira era a estação de comboios central, a Friedrichstrasse", diz este professor da Faculdade de Letras de Lisboa. "Numa mesma estação de metro e comboios, havia dois mundos completamente distintos, o mundo do socialismo e o mundo do capitalismo. As pessoas passavam a um metro umas das outras sem se poderem ver nem falar. A divisória era uma cortina de ferro que cobria parte da estação. A cortina de ferro de que Churchill falava estava ali, materializada. É algo que só vivido."

Mas não era só no muro que rasgava a cidade que o peso da ditadura se sentia. João Lourenço - "Eu não fui pelo PCP, nunca fui do PCP" -, que esteve em Berlim a estagiar um ano, a convite do director da Casa de Brecht, Werner Hesht, e do director do Berliner Ensemble, Manfred Wekwerth, afirma: "Senti uma segurança como nunca senti em cidade nenhuma do mundo. Os soldados nas esquinas, nas casas de vidro, davam segurança. Havia uma segurança dada pelo regime." Mas não esconde que essa segurança tinha um lado assustador: "Um dia acordei com o barulho e com o chão a tremer. Fui à janela, eram os tanques com mísseis a passar. Durante uns segundos pensei: é a guerra. Eram os preparativos para o desfile do 1.º de Maio."
"Todas as pessoas com quem contactei, fossem do partido ou não, tinham uma posição extremamente crítica em relação à burocracia e à incapacidade do sistema", afirma Mário Vieira de Carvalho, explicando que "a falta de liberdade de expressão não deixava reflectir a realidade e o criticismo não passava". Pormenoriza: "Nas reuniões debatiam e criticavam, mas não passava para cima. A corrente não era de baixo para cima, era de cima para baixo." Uma atitude de comando que era "a expressão de uma falsa consciência sobre a realidade" e também, segundo Vieira de Carvalho, "profundamente antimarxista".
Os seis portugueses que viveram na ex-RDA são unânimes em elogiar os benefícios proporcionados pelo socialismo real. É desse bem-estar e dessa qualidade de vida que sentem nostalgia.

"Vivi lá, gostei de viver e vivi bem. Às vezes digo na brincadeira "os tempos em que fui rico", no sentido de viver sem preocupações materiais", diz o jornalista Martins Morim.
Explicando o que era o bem-estar proporcionado pelo sistema, Martins Morim relata: "Não pagávamos renda quase, era um preço simbólico. A nossa filha fez a escola, ninguém comprava livros, ensinava-se a respeitar os livros e no fim entregavam-se de novo à escola. A escola era gratuita, os transportes eram baratos, ir ao teatro era barato. Não se ganhava muito, mas ir à ópera era acessível." Lembra: "As pessoas viviam bem, tinham dinheiro, tinham é que esperar por comprar carro." Salienta as peculiaridades do sistema socialista alemão de Leste em relação ao resto dos países socialistas: "Quando vim para Portugal, vivíamos numa zona de Berlim que tinha lojas privadas e no campo havia direito de propriedade. Por outro lado, a situação religiosa era respeitada."
Com uma visão crítica do regime da RDA, Ana Portela salienta que "Leipzig era a zona mais poluída da Europa", mas, por outro lado, "era um centro estudantil mais importante que Berlim, tinham estudantes de todo o mundo enviados pelos partidos e pelas organizações comunistas". Aí, voltou a casar com um estudante chileno e teve duas gémeas em Leipzig, o que lhe deu direito a um ano de licença com ordenado e assistência médica.

Mas o que esta professora destaca como melhor é o sistema de ensino: "A minha filha tinha natação duas vezes por semana. Um dia disse-lhe para não ir à escola e a professora veio a casa. Ela tinha muitas actividades. Tinha uma escola separada de música, fez quatro anos de piano. Além das aulas, os estudantes mais velhos vinham a casa ensinar os mais novos a praticar com os instrumentos."
Falando com a experiência de uma vida dedicada ao ensino em Portugal, Ana Portela diz: "Conheço o ensino de cá e vi o de lá, não tem comparação. As minhas filhas ainda não tinham dois anos e já se vestiam e comiam sozinhas. Quando viemos estranharam, porque se deitavam cedo e os colegas viam todos televisão à noite." Nota, ainda, que "havia uma educação ecológica e ambiental; os miúdos levavam as garrafas e os jornais para reciclar, o papel era reciclado".
"A cultura era muito acessível", diz Ana Portela, o que é igualmente defendido por João Lourenço. O encenador sublinha, contudo, as condições em que esteve em Berlim-Leste. "Eu era um convidado em condições óptimas, tinha um panorama cultural muito rico", confessa.
"Os livros eram baratos, comprei muitos", conta Mário Vieira de Carvalho. "Onde começavam os problemas? Onde era absurdo. Por exemplo, a dificuldade em tirar fotocópias. Na Biblioteca de Berlim oriental, que tinha uma colecção de música excelente, as fotocópias eram limitadas, fazia-se requisição e demorava dias. Em Berlim ocidental, as próprias pessoas tiravam as fotocópias no momento."
Mário Vieira de Carvalho nega que houvesse falta de bens e atesta a qualidade dos supermercados: "Nunca senti falta de produtos nem dificuldades de abastecimento. Não era assim nos outros países de Leste. Na Alemanha de Leste, havia os produtos, mas não havia marcas, eram uma espécie de produtos genéricos." Relata um episódio revelador dos problemas de funcionamento do mercado: "Uma vez cheguei a uma estação de metro e vi um vendedor de morangos. Quis comprar meio quilo, não consegui, só vendia uma caixa inteira. Os produtos que não estavam normalmente disponíveis só se vendiam em grandes quantidades e desapareciam rapidamente. O mesmo acontecia com discos e livros, tínhamos de estar atentos para não esgotar."
Como o "sistema subsidiava todos os produtos de primeira necessidade" e os preços eram simbólicos - quando os bens não eram mesmo grátis -, "as pessoas acumulavam dinheiro que não podiam gastar, porque depois havia lista de espera para o carro, as férias eram só em países socialistas", lembra o musicólogo. "Havia sede de consumo e excesso de meios de pagamento, porque não se pagava o que se consumia."
Também João de Freitas Branco defende que o problema em Berlim era "a variedade da oferta" e reconhece que, mesmo assim, "a situação em Berlim não era a de toda a RDA, havia cidades em que era pior". Mas defende o sistema então vigente. "Passados estes anos todos, continuo a ter a opinião que sempre tive, e que é muito mais positiva que a opinião dominante sobre o socialismo real", afirma. "Ali já tinha sido dado um passo civilizacional absolutamente essencial e que se baseava no banimento das desigualdades materiais mais aberrantes, tendo desaparecido a pobreza, essa pobreza que eu conhecia aqui de Portugal."
Este professor da Faculdade de Letras lembra que "quando se fala de direitos humanos verifica-se que as pessoas reduzem a uma única coisa a liberdade de expressão", e questiona: "Mas o bife, o concerto, o livro, a escola - não é isto, também, direitos humanos?" Marcando a diferença dos dois sistemas, socialista e capitalista, sublinha: "Quando saí de Portugal havia milhares de crianças sem acesso à escola. Na RDA não havia um único cidadão que não tivesse acesso à escola." A escolaridade era gratuita e universal e a redistribuição de riqueza era outra, e isso era possível "porque houve uma mudança do regime de propriedade", o que, argumenta, "horroriza qualquer pessoa que considera o capitalismo o melhor dos mundos".
Mas, ao elogiar o sistema, Freitas Branco não deixa de frisar o outro lado, o do regime. "Infelizmente, este passo civilizacional em frente coabitava com um outro, que era um passo civilizacional atrás: o Estado policial e a ausência efectiva da liberdade de expressão." Este investigador, que estava em Berlim faz hoje precisamente 20 anos, conclui: "Na minha opinião, a RDA tinha de acabar, porque um regime onde não há liberdade de expressão tem de acabar. Mas alimentei a esperança de que essa mudança não representasse a anulação do passo civilizacional."
(Por São José Almeida no Público)

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