Foi com uma dilacerante sensação de orgulho ferido que notei que os bloggers Lourenço Cordeiro e Bruno Sena Martins se envolveram num debate sadio sobre os méritos de Saturday sem que nenhum deles me tenha endereçado um convite explícito para brincar com eles também. Até James Wood foi recomendado na minha ausência. Porque sei ler nas entrelinhas, e porque não gosto de me meter nas conversas das outras pessoas, vou circunscrever a minha intervenção a três frases que me causaram particular indignação, passando, logo de seguida, para a leitura dos artigos assinados por Rui Miguel Tovar no Record de hoje, garantindo ainda que nunca mais brincarei à literatura com os bloggers Lourenço Cordeiro e Bruno Sena Martins sem que justificações convincentes sejam antes providenciadas para todo este lamentável incidente.
«Saturday não é um romance político»
Vou ser generoso e interpretar esta frase como uma daquelas coisas que uma pessoa só escreve quando está sóbria, e às quais não se deve dar demasiada importância. Se Saturday é excluído da definição “romance político”, estamos a raquitizar (palavra que certamente existe, mãe) essa definição até ao tamanho de um quadrozinho de especificidades que só vai provavelmente admitir coisas escritas pelo Gorky. É possível falar de Saturday como um romance político sem o diminuir artisticamente, sem limitar os seus ruídos aos de um megafone propagandístico. E também é possível fazer isto sem cair no extremismo oposto de insuflar a definição de “romance político” até que seja possível falar de Enid Blyton como escritora de romances políticos, como ouvi eu um dia a uma senhora no supermercado. “Romance político” não é uma etiqueta reducionista, nem um atestado de obsolescência instantânea. A não ser que assim o queiramos.
«não se pode ler Saturday à luz do comentário político que daí se poderá extrair»
Mau. Então não pode porquê? Só é preciso substituir a palavra “comentário” por outra palavra qualquer, preferencialmente uma palavra que exista (ao contrário da palavra “raquitizar”, cuja não-existência acabei de confirmar com bastante mágoa). Pode ler-se Saturday a dúzias de luzes distintas; uma delas terá forçosamente de ser a difusa e tacteante reflexão política do seu protagonista. É claro que estas duas frases do Lourenço não são discordâncias em relação à categorização do romance, mas sim tentativas de o blindar a críticas de pendor ideológico, desviando o foco para a tal «mestria narrativa» (que é, diga-se, bastante menos evidente do que em Atonement, Amsterdam ou Enduring Love; não tendo ainda lido o recente One Chiseled Bitch, reservo o meu julgamento). Entre as duas formas de reducionismo, até sou capaz de preferir, também, a formalista. Mas não há nada de intrinsecamente errado num “romance político”, nem em fazer uma leitura política de um romance. E Saturday é um “romance político”, não é um panfleto. É um “romance político” em que se reflecte politicamente, não um em que se teoriza sobre Política. Não tenta ilustrar as virtudes de um determinado sistema, mas sim dramatizar a ausência de um sistema. Ideologicamente, os personagens de Saturday não são profundos; as suas trocas de opiniões reproduzem os debates de pessoas relativamente bem-informadas, mas cuja informação é principalmente mediada pela televisão e pelos jornais, não pelos livros de John Rawls ou Leo Strauss. Os seus argumentos rodopiam entre a ansiedade factualmente correcta, o lugar-comum bem-intencionado, e a episódica afirmação relevante.
O excerto de Bellow que serve de epígrafe ao romance fala, salvo erro (não tenho aqui o livro, estou num ciber-café, apelo à calma, não me venha com coisas, mãe) no “late failure of radical hopes”. É este o território intelectual em que as personagens do romance reflectem politicamente. E essa reflexão passa necessariamente pelo desencanto com agendas políticas de larga escala; pelo facto de pessoas como Perowne (e até o filho) se verem forçadas a reduzir o perímetro do seu contentamento civilizacional à escala do quotidiano aquisitivo e da pequena intimidade; e com o definhar da esperança em soluções políticas para problemas universais. Todas estas questões são políticas, e todas são cruciais nas reflexões do protagonista do livro. Se se defende que «não se pode ler Saturday» a esta luz, está-se a ser tão reducionista com os que o lêm apenas a essa luz.
«mestria narrativa à parte (talvez com excessivo “topem só este domínio”), convém dizer que Saturday tem a subtileza de um Levantado do Chão no que à presença da libido política do seu autor diz respeito»
Não percebo isto. Julgava que havia mais hipóteses de encontrar vestígios de sectarismo ideológico em bivalves do que neste livro. Se a libido política de McEwan está presente em Saturday, só posso concluir que se trata de uma libido política claramente bissexual-platónica; a libido de alguém cujas hormonas estão cheiinhas de vontade, mas se recusam a tomar decisões executivas. Saturday é um livro que faz um fetiche da recusa em adoptar uma posição inabalável. Acusar isto de falta de subtileza, sinceramente, não lembra à New Statesman.
A ambivalência de Perowne não é uma pose. A sua posição sobre qualquer assunto tem tendência a oscilar - isto é reiterado duas ou três vezes ao longo do romance - de acordo com a posição do seu interlocutor. Este é um género de oscilação que muitas pessoas devem ter experimentado nesse febril pedaço de contemporaneidade que foi Fevereiro de 2003. Numa altura em que o debate pós-Blix e pré-bombardeamento se resumia a uma simétrica enumeração de banalidades ideologicamente determinadas, era praticamente impossível lermos um artigo do António Ribeiro Ferreira sem sermos acometidos por um irreprimível desejo de sair pelas ruas a cantar o «Imagine», ou lermos outro do Fernando Rosas sem ficarmos cheios de vontade de napalmizar (mãe?) o Médio Oriente inteiro. Num território intelectual pejado de certezas ocas, os disparates momentaneamente não-ouvidos soavam sempre mais lúcidos do que aqueles à nossa frente. A “libido política” de Perowne (não sei se o Bruno a equivale à do autor) é uma desconfiança militante em relação aos argumentos de ambas as partes.
O discurso político de Saturday foi acusado de ser trivial (entre outros por John Banville, que escreveu uma crítica extravagantemente imbecil ao livro), mas o que é interpretado como trivial é na verdade uma resposta instintiva às frenéticas certezas dos que pareciam fazer gala em abdicar da ambivalência, e em espezinhar nuances debaixo dos seus pezinhos atarefados, enquanto dançavam as respectivas valsas marciais ou kizombas pacifistas.
Tenho a certeza de que há duas ou três citações do livro que demonstrariam inequivocamente a minha razão em tudo isto, mas o livro está noutra margem, eu deixei caducar o passe da Fertagus, e os bilhetes de ida-e-volta estão pela hora da morte, pelo que com licença.
«Saturday não é um romance político»
Vou ser generoso e interpretar esta frase como uma daquelas coisas que uma pessoa só escreve quando está sóbria, e às quais não se deve dar demasiada importância. Se Saturday é excluído da definição “romance político”, estamos a raquitizar (palavra que certamente existe, mãe) essa definição até ao tamanho de um quadrozinho de especificidades que só vai provavelmente admitir coisas escritas pelo Gorky. É possível falar de Saturday como um romance político sem o diminuir artisticamente, sem limitar os seus ruídos aos de um megafone propagandístico. E também é possível fazer isto sem cair no extremismo oposto de insuflar a definição de “romance político” até que seja possível falar de Enid Blyton como escritora de romances políticos, como ouvi eu um dia a uma senhora no supermercado. “Romance político” não é uma etiqueta reducionista, nem um atestado de obsolescência instantânea. A não ser que assim o queiramos.
«não se pode ler Saturday à luz do comentário político que daí se poderá extrair»
Mau. Então não pode porquê? Só é preciso substituir a palavra “comentário” por outra palavra qualquer, preferencialmente uma palavra que exista (ao contrário da palavra “raquitizar”, cuja não-existência acabei de confirmar com bastante mágoa). Pode ler-se Saturday a dúzias de luzes distintas; uma delas terá forçosamente de ser a difusa e tacteante reflexão política do seu protagonista. É claro que estas duas frases do Lourenço não são discordâncias em relação à categorização do romance, mas sim tentativas de o blindar a críticas de pendor ideológico, desviando o foco para a tal «mestria narrativa» (que é, diga-se, bastante menos evidente do que em Atonement, Amsterdam ou Enduring Love; não tendo ainda lido o recente One Chiseled Bitch, reservo o meu julgamento). Entre as duas formas de reducionismo, até sou capaz de preferir, também, a formalista. Mas não há nada de intrinsecamente errado num “romance político”, nem em fazer uma leitura política de um romance. E Saturday é um “romance político”, não é um panfleto. É um “romance político” em que se reflecte politicamente, não um em que se teoriza sobre Política. Não tenta ilustrar as virtudes de um determinado sistema, mas sim dramatizar a ausência de um sistema. Ideologicamente, os personagens de Saturday não são profundos; as suas trocas de opiniões reproduzem os debates de pessoas relativamente bem-informadas, mas cuja informação é principalmente mediada pela televisão e pelos jornais, não pelos livros de John Rawls ou Leo Strauss. Os seus argumentos rodopiam entre a ansiedade factualmente correcta, o lugar-comum bem-intencionado, e a episódica afirmação relevante.
O excerto de Bellow que serve de epígrafe ao romance fala, salvo erro (não tenho aqui o livro, estou num ciber-café, apelo à calma, não me venha com coisas, mãe) no “late failure of radical hopes”. É este o território intelectual em que as personagens do romance reflectem politicamente. E essa reflexão passa necessariamente pelo desencanto com agendas políticas de larga escala; pelo facto de pessoas como Perowne (e até o filho) se verem forçadas a reduzir o perímetro do seu contentamento civilizacional à escala do quotidiano aquisitivo e da pequena intimidade; e com o definhar da esperança em soluções políticas para problemas universais. Todas estas questões são políticas, e todas são cruciais nas reflexões do protagonista do livro. Se se defende que «não se pode ler Saturday» a esta luz, está-se a ser tão reducionista com os que o lêm apenas a essa luz.
«mestria narrativa à parte (talvez com excessivo “topem só este domínio”), convém dizer que Saturday tem a subtileza de um Levantado do Chão no que à presença da libido política do seu autor diz respeito»
Não percebo isto. Julgava que havia mais hipóteses de encontrar vestígios de sectarismo ideológico em bivalves do que neste livro. Se a libido política de McEwan está presente em Saturday, só posso concluir que se trata de uma libido política claramente bissexual-platónica; a libido de alguém cujas hormonas estão cheiinhas de vontade, mas se recusam a tomar decisões executivas. Saturday é um livro que faz um fetiche da recusa em adoptar uma posição inabalável. Acusar isto de falta de subtileza, sinceramente, não lembra à New Statesman.
A ambivalência de Perowne não é uma pose. A sua posição sobre qualquer assunto tem tendência a oscilar - isto é reiterado duas ou três vezes ao longo do romance - de acordo com a posição do seu interlocutor. Este é um género de oscilação que muitas pessoas devem ter experimentado nesse febril pedaço de contemporaneidade que foi Fevereiro de 2003. Numa altura em que o debate pós-Blix e pré-bombardeamento se resumia a uma simétrica enumeração de banalidades ideologicamente determinadas, era praticamente impossível lermos um artigo do António Ribeiro Ferreira sem sermos acometidos por um irreprimível desejo de sair pelas ruas a cantar o «Imagine», ou lermos outro do Fernando Rosas sem ficarmos cheios de vontade de napalmizar (mãe?) o Médio Oriente inteiro. Num território intelectual pejado de certezas ocas, os disparates momentaneamente não-ouvidos soavam sempre mais lúcidos do que aqueles à nossa frente. A “libido política” de Perowne (não sei se o Bruno a equivale à do autor) é uma desconfiança militante em relação aos argumentos de ambas as partes.
O discurso político de Saturday foi acusado de ser trivial (entre outros por John Banville, que escreveu uma crítica extravagantemente imbecil ao livro), mas o que é interpretado como trivial é na verdade uma resposta instintiva às frenéticas certezas dos que pareciam fazer gala em abdicar da ambivalência, e em espezinhar nuances debaixo dos seus pezinhos atarefados, enquanto dançavam as respectivas valsas marciais ou kizombas pacifistas.
Tenho a certeza de que há duas ou três citações do livro que demonstrariam inequivocamente a minha razão em tudo isto, mas o livro está noutra margem, eu deixei caducar o passe da Fertagus, e os bilhetes de ida-e-volta estão pela hora da morte, pelo que com licença.
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