Monday, June 29, 2009

MILF Hunter

Gostaria de avisar todas as pessoas que leram este post hipoglicémico do Lourenço Ataíde Cordeiro (nome não-fictício) e ficaram a pensar que o ensaio de David Foster Wallace intitulado «Consider the Lobster» é um panfleto da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas cuja tese se resume a "Epá, baza lá comer relva que os animais são altamente" que o ensaio em questão passa por esse cubículo argumentativo apenas de passagem, para abanar a cabeça e prosseguir em direcção a salas muito maiores.
O único problema do ensaio é precisamente o facto de ser reduzido. As virtudes específicas de David Foster Wallace são directamente proporcionais ao espaço que ele tem para as exibir; o ensaio brontossáurico favorece-o de forma muito evidente. Ainda assim, «Consider the Lobster» tem virtudes assinaláveis. (Uma das quais é involuntária: o ensaio relata uma experiência no Maine Lobster Festival, evento que é designado como MLF ao longo das vinte páginas. E o acrónimo MLF, para um par de olhos débeis e um cérebro atolado na adolescência, assemelha-se a MILF, o que resulta em passagens bastante susceptíveis a humor classe-B, como por exemplo "locals do endorse and enjoy the MILF", "a lot of diehard MILF partisans" e "right out there in the MILF's northern grounds for everyone to see").
Já o problema do post do Lourenço é que acerta ao lado quando tenta isolar e definir as virtudes e defeitos de David Foster Wallace. Quando o Lourenço escreve, por exemplo, que "David Foster Wallace parece não transportar consigo nenhum preconceito em relação aos temas que aborda", há que dizer que não parece nada disto. O que parece é que David Foster Wallace transporta os preconceitos todos, e transporta também a consciência de que transporta os preconceitos todos, e a consciência de que essa consciência pode a qualquer momento deixar de ser vantajosa para se tornar incapacitante. Há uma propensão infantil em DFW para deixar a terra intelectual toda queimada à sua passagem, para não se contentar com nenhuma conclusão sem questionar as premissas e a possibilidade de o seu conhecimento dessas premissas poder ou não ter influência nas suas escolhas. DFW é (era) aquele tipo de pessoa incapaz de adoptar uma posição sem considerar a totalidade dos contextos em que essa posição já foi adoptada, uma característica muito útil para evitar um certo registo de escrita baseado na confiança absoluta de que se está a cindir o átomo naquele preciso momento, mas que, levada às últimas consequências, pode impossibilitar qualquer opinião que não esteja envolvida num mil-folhas de distanciamento irónico. No ensaio da lagosta, DFW sabe a que é que vai soar cada salto argumentativo porque já foi tudo dito e escrito antes, mas também sabe que é preciso parar em algum ponto, nem que seja num ponto rodeado de caveats.
Mais estranha ainda é a asserção do Lourenço de que "David Foster Wallace recorre a alguns argumentos, digamos, frágeis, como por exemplo «e se fosse com um carneirinho, como é que era?»", que eu só posso interpretar como uma paráfrase apressada que correu, digamos, mal. É que a única menção ao carneirinho no ensaio, para além de não ter rigorosamente nada a ver com o argumento que o Lourenço lhe imputa, está afundada não apenas em perguntas como em contra-argumentos explícitos: «And is “lamb”/“lamb” the counterexample that sinks the whole theory?».
Isto é (era) o homem. Outras duas citações dispersas são representativas não apenas do ensaio em questão, mas do estilo de pensamento de DFW em geral, que estava muito, muito longe do andar por aí a "recorrer" a "argumentos": «... and when it comes to defending such a belief, even to myself, I have to aknowledge that ...» e «Of course, the most common sort of counterargument here would begin by objecting that...". (É possível que DFW fosse aquele miúdo de três anos capaz de perder metade de uma tarde a considerar questões do género: "o facto de eu estar a pensar no acto de meter uma perna à frente da outra, e de saber que o estado de estar a pensar no acto de meter uma perna à frente da outra pode interferir no acto em si, terá algumas implicações práticas na minha capacidade de ir ali ao caixote buscar os Transformers?").
Vou agora citar um excerto de um conto do Poe ("The Purloined Letter"), uma decisão táctica que faz todo o sentido nesta altura:

I knew one [boy] about eight years of age, whose success at guessing in the game of 'even and odd' attracted universal admiration. This game is simple, and is played with marbles. One player holds in his hand a number of these toys, and demands of another whether that number is even or odd. If the guess is right, the guesser wins one; if wrong, he loses one. The boy to whom I allude won all the marbles of the school. Of course he had some principle of guessing; and this lay in mere observation and admeasurement of the astuteness of his opponents. For example, an arrant simpleton is his opponent, and, holding up his closed hand, asks, 'are they even or odd?' Our schoolboy replies, 'odd,' and loses; but upon the second trial he wins, for he then says to himself, the simpleton had them even upon the first trial, and his amount of cunning is just sufficient to make him have them odd upon the second; I will therefore guess odd'; --he guesses odd, and wins. Now, with a simpleton a degree above the first, he would have reasoned thus: 'This fellow finds that in the first instance I guessed odd, and, in the second, he will propose to himself upon the first impulse, a simple variation from even to odd, as did the first simpleton; but then a second thought will suggest that this is too simple a variation, and finally he will decide upon putting it even as before. I will therefore guess even' guesses even, and wins.

Existe neste modelo de raciocínio o potencial para a regressão infinita. A partir de um determinado ponto, avançar para o ponto seguinte deixa de representar um incremento de sofisticação, e passa a representar uma redução de bom-senso. Da mesma maneira, a partir de um determinado número de avanços, a estabilidade é ancorada num ponto arbitrário. Creio que muitas posições embaraçosas (políticas, morais e futebolísticas) são erguidas sobre versões deste duelo ontológico ("Eu sei porque é que tu achas que o Bush era um cromo, mas eu sobrevoei esse raciocínio numa asa-delta de lucidez e agora estou muito mais à frente").
O que eu encontrei em David Foster Wallace não foi só uma consciência invulgarmente extensa da gritante artificialidade deste processo, ou uma consciência da arbitrariedade do patamar em que a inteligência decide travá-lo, mas a percepção de que essa artificialidade acaba por ser essencial a um mínimo de estabilidade intelectual e emocional. É provável que possa ter encontrado isso noutras pessoas mortas que andei para aqui a ler, mas em nenhum caso me fez tanta aflição que a pessoa estivesse morta. E isto tem de ficar por aqui, uma vez que há pessoas vivas a tentar correr comigo do computador há mais de meia-hora com argumentos espectacularmente não-Wallacianos.

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