Chegou ao fim o Mundial em que a única equipa sem derrotas foi a Nova Zelândia, em que a grande figura individual foi um molusco, e em que a Espanha, depois de derrotar os índios, os Nazis e a Frota Imperial, conseguiu aparentemente redimir a Humanidade, salvar as baleias, e tornar o planeta mais seguro para a democracia.
O triunfo dos campeões menos entusiasmantes desde o Brasil de 1994 tem sido quase consensualmente aplaudido, perante a minha boquiaberta conta bancária, como "um triunfo do futebol bonito", o que indica que eu devo ter perdido reuniões importantíssimas, onde se andaram a redefinir conceitos à traição.
A vitória da Espanha é merecida, o que só por si não quer dizer nada, uma vez que o futebol funciona ainda melhor do que o mercado. Não me ocorre uma única competição internacional no meu tempo de vida em que a vitória final não tenha sido merecida; até nas raras ocasiões em que a "melhor" (aspas relativistas) equipa não ganhou, como no Mundial de 1998 (Holanda) e no Euro 2004 (provavelmente a Rep. Checa), a circularidade tacitamente embutida na definição de "vitória merecida" fez com que quem ganhasse merecesse fazê-lo. Na África do Sul, nem sequer houve esse espaço para a manobra retórica: a Espanha era a melhor equipa, e ganhou. Está tudo certo, não é mais nem menos do que isto. Não havia necessidade nenhuma de perturbarem a minha conturbada recuperação emocional depois de ter sido brutalmente espoliado de três mil euros, dando uma rodagem incompreensível à narrativa do "futebol bonito, ah que futebol bonito, é um futebol muito positivo, o tiki-taka, a posse de bola, é assim que deve ser, o tiki-taka, é tudo tão bonito, vejam o número de passes, etc."
Para esclarecer o conceito de vitória merecida: a Espanha venceu justamente porque um Mundial é como uma eleição para a presidência - pretende-se apenas que ganhe o melhor dos participantes. Não é necessário fingir que a opção utilitária está a cumprir um ideal qualquer, basta afastar o Manuel Alegre dos sítios. Nesse sentido, a selecção espanhola foi um justo e digno professor Aníbal Cavaco Silva; estar a promovê-la a Péricles ou Bismarck é capaz de ser um bocadinho excessivo. Não assistimos a um triunfo do futebol espectáculo, apenas a um triunfo do melhor conjunto de jogadores, o que, já agora, é sempre de aplaudir, em particular se os jogadores são tão absurdamente bons como estes (e boas pessoas, ainda por cima, tirando o Busquets, que está duas léguas éticas abaixo do Felipe Melo e do Van Bommel).
Os argumentos utilizados para se tentar extrair desta vitória um significado moral que ela não merece foram competentemente sintetizados neste útil post do Lourenço, do qual ele já está certamente muito arrependido, e do qual tenciono transcrever as passagens mais ofensivas sempre que seja apropriado. Comecemos pela frase que mais vontade me deu de ir destruir um prédio bonito: «obviamente, acho que seria um grande serviço ao desporto a Espanha ser campeã do mundo: provaria que se pode ganhar coisas a jogar bonito, algo extremamente necessário depois daquilo que se passou com o Inter este ano».
Elogiar o futebol praticado pela Espanha ao longo da competição como uma epítome do "jogo bonito" parece-me um caso clássico de confusão crítica (aliteração totalmente planeada): tendo-se detectado a inequívoca existência de talento, todos os frutos produzidos por esse talento são automaticamente classificados como positivos, como se não houvesse um livro chato na carreira de cada Philip Roth, ou como se eu próprio – eu próprio! - nunca tivesse escrito um mau post. Confrontado com a excelência técnica dos jogadores espanhóis (em que um dos defesas-centrais é melhor no passe, na recepção e no drible do que qualquer médio inglês, por exemplo), o espectador que se aborrece suspeita-se imediatamente de estar a caír no filistinismo, ou no iconoclasmo fácil.
O equívoco de base parece-me fácil de identificar. Se reduzirmos o jogo às suas três dimensões básicas - técnica, táctica e física - não é especialmente condenável promover o aspecto técnico em detrimento dos outros dois como o mais importante para o conceito de futebol bem jogado, porque é a capacidade técnica que permite o lance de ruptura, ou a variação inesperada - todos os elementos associados à criatividade, que permite quebrar a deriva mecanicista que o rigor táctico e a capacidade atlética tendem a impor.
O problema com a Espanha é o de ter utilizado - e isto é sem dúvida uma inovação - a capacidade técnica para impor no jogo o mesmo tipo de restrições que no passado e no presente das outras equipas eram impostas pela táctica ou pelo físico.
Num perfil recente de Federer na New Yorker, ele diz o seguinte sobre o jogo de Nadal: «I admire Rafa for that (...) The mental toughness of playing each point the same is amazing, but I could never play that way. I need change, I need a different point every time».
Vamos ignorar os diversos tipos de nojo que a segunda metade deste subtil raciocínio defensivo carlosqueiroziano provoca e concentrar-nos no essencial. A mais visível qualidade exibida pelo futebol espanhol no Mundial foi esta: a mental toughness de jogar cada jogada como se fosse a mesma. Mas o espectador precisa de mais, precisa de variação, precisa não exactamente de uma jogada diferente de cada vez, mas pelo menos de vez em quando. O que o kaku-tani faz é formatar e homogeneizar o jogo, transformando cada jogada numa repetição, razão pela qual a virtude que começa a ser mais elogiada no jogo Espanhol seja não a criatividade, mas a paciência. E a paciência, aplicada com consistência psicótica, é uma virtude que impressiona, mas não entusiasma.
Daí que esta declaração do Lourenço seja tão esfalfadamente equivocada: «o problema da aparente falta de eficácia daquela circulação de bola nasce da atitude de qualquer adversário (Portugal, Paraguai, Alemanha) que dá por dado adquirido a sua inferioridade e se limita a aguardar por um erro espanhol».
Passando por cima (muito por cima, atente-se) da sugestão que o problema da falta de eficácia é a "atitude" dos adversários (talvez ajudasse se eles se demonstrassem mais fair play fazendo um churrasquinho na linha lateral enquanto a Espanha jogava bonito), temos aqui um erro crucial de interpretação. Porque o cálculo racional por detrás da entediante circulação de bola da Espanha é precisamente esse: aguardar um erro do adversário. Isto foi assumido sem problemas por Xavi, e antes por Guardiola. A Espanha não procura controlar o adversário; procura anestesiá-lo. E é inevitável que anestesie parte da plateia também.
Conseguiram a proeza de levar ao extremo da eficiência um determinado processo técnico (tricotado de passes, lento e sem grande progressão), de caminho forçando uma exibição de destreza puramente técnica a produzir na percepção do espectador o mesmo efeito de uma exibição de destreza puramente táctica. E a posse de bola acaba por ter um intrigante efeito colateral: ao resguardarem-se fisicamente, os jogadores espanhóis conseguiram ser os melhores do torneio a fazer pressão alta, pois só precisavam de a exercer seis ou sete vezes por jogo, e estavam todos fresquinhos. A Espanha instrumentalizou uma dos mais impressionantes arsenais de técnica indididual de que há memória para jogar essencialmente um jogo defensivo e de baixo risco.
A ideia de que o futebol da Espanha “representa tudo o que o futebol deveria ser” também caiu por terra (com genuína pena minha) e confunde-me, inclusivamente intriga-me, adicionalmente vexa-me, que se defenda o contrário. O tutan-khamon pareceu, de facto, qualquer coisa como o futuro risonho do futebol, no curto espaço de tempo entre o Euro 2008 e a eliminatória do Barcelona com o Inter, mas agora que foi definitivamente baptizado, entronizado como movimento avant-garde, defendido por uma teoria estética, e sujeito a evangelização por apóstolos e críticos de Arte, assistimos a uma falência parcial do mesmo. O teste definitivo é este: se um conjunto de jogadores de qualidade possivelmente irrepetível, como Xavi, Iniesta e aqueles outros que lá andam, não conseguiram transformar o kiri-te-kanawa em nada mais do que um veículo para ganhar bem, mas chato, o modelo é insustentável como paradigma do futebol bonito. A falência é apenas parcial como mecanismo para ganhar jogos: sete dos oito golos da Espanha e para aí uns 90% das suas ocasiões de golo surgiram não de jogadas de envolvimento, mas sim de lances de bola parada, jogadas individuais de Villa ou Iniesta (sempre que desrespeitavam o metrónomo sedativo do resto da equipa), erros de arbitragem, e contra-ataques competentes - embora se possa argumentar que só a fadiga induzida pelo kon-tiki permitiu essa procissão de acidentes. O Lourenço fala, assumo que sem ironia, de uma “sensação de inevitabilidade” que se começa a instalar: “mais cedo ou mais tarde o golo vai aparecer”. Inevitabilidade foi algo que não senti em nenhum momento no percurso da Espanha, que, como o percurso de qualquer equipa vencedora numa competição a eliminar, foi sendo balizado por contingências favoráveis sucessivas (em número de seis, e não de sete, recordemos). O jogo com a Suiça não pode ser retroactivamente classificado como “um acidente”, porque, se é verdade que a Espanha podia perfeitamente ter ganho esse jogo por 1-0 (bastava ter marcado primeiro), também é verdade que podia ter perdido cada um dos jogos subsequentes por 1-0 (bastava ter sofrido um golo primeiro).
Como entretenimento, no entanto, a falência é total. O objectivo da circulação de bola da Espanha não é entreter o Lourenço nem a minha pessoa. E não o faz. O Lourenço, aliás, só pode estar muito cansado para achar aquilo “futebol bonito”; por amor de Deus Nosso Senhor, o futebol praticado pelo Benfica na época felizmente passada esteve muito mais perto do que é “futebol bonito” do que o muzak de auteur da Espanha. Xavi, uma das pessoas mais pragmáticas e honestas da civilização ocidental, teve a dignidade de sugerir que o futebol da Espanha pode ser aborrecido para o público neutral. Tem toda a razão. Tal como o Brasil de 1994, a selecção de que está espiritualmente mais próxima (o recorde de passes que o Xavi bateu pertencia ao Dunga), a Espanha teve o grupo de jogadores mais tecnicamente dotados do torneio, praticou um futebol personalizado que consiste em reter a bola até toda a gente estar devidamente narcotizada, e contou com um avançado no pico da sua forma terrestre - acrescentando a tudo isto o Iniesta no lugar do Raí. E ganhou, com toda a justiça, e sem necessidade de os erguermos agora a um panteão feito de andaimes.
O que a Espanha fez, utilizando processos diametralmente opostos, é exactamente o que o Inter de Mourinho fez nas eliminatórias com o Barcelona: levar um conjunto reduzido de qualidades específicas ao extremo da eficácia, para eliminar o máximo de variáveis e transformar cada situação de jogo na ocorrência mais segura possível. O que uns fizeram com bola, outros fizeram sem ela, mas o único espectáculo que interessava a ambos era a cerimónia de entrega do troféu.
Não há problema nenhum com o culto da eficiência; só acho extremamente ofensivo para a minha presente situação económica que se tente romantizá-lo.
O triunfo dos campeões menos entusiasmantes desde o Brasil de 1994 tem sido quase consensualmente aplaudido, perante a minha boquiaberta conta bancária, como "um triunfo do futebol bonito", o que indica que eu devo ter perdido reuniões importantíssimas, onde se andaram a redefinir conceitos à traição.
A vitória da Espanha é merecida, o que só por si não quer dizer nada, uma vez que o futebol funciona ainda melhor do que o mercado. Não me ocorre uma única competição internacional no meu tempo de vida em que a vitória final não tenha sido merecida; até nas raras ocasiões em que a "melhor" (aspas relativistas) equipa não ganhou, como no Mundial de 1998 (Holanda) e no Euro 2004 (provavelmente a Rep. Checa), a circularidade tacitamente embutida na definição de "vitória merecida" fez com que quem ganhasse merecesse fazê-lo. Na África do Sul, nem sequer houve esse espaço para a manobra retórica: a Espanha era a melhor equipa, e ganhou. Está tudo certo, não é mais nem menos do que isto. Não havia necessidade nenhuma de perturbarem a minha conturbada recuperação emocional depois de ter sido brutalmente espoliado de três mil euros, dando uma rodagem incompreensível à narrativa do "futebol bonito, ah que futebol bonito, é um futebol muito positivo, o tiki-taka, a posse de bola, é assim que deve ser, o tiki-taka, é tudo tão bonito, vejam o número de passes, etc."
Para esclarecer o conceito de vitória merecida: a Espanha venceu justamente porque um Mundial é como uma eleição para a presidência - pretende-se apenas que ganhe o melhor dos participantes. Não é necessário fingir que a opção utilitária está a cumprir um ideal qualquer, basta afastar o Manuel Alegre dos sítios. Nesse sentido, a selecção espanhola foi um justo e digno professor Aníbal Cavaco Silva; estar a promovê-la a Péricles ou Bismarck é capaz de ser um bocadinho excessivo. Não assistimos a um triunfo do futebol espectáculo, apenas a um triunfo do melhor conjunto de jogadores, o que, já agora, é sempre de aplaudir, em particular se os jogadores são tão absurdamente bons como estes (e boas pessoas, ainda por cima, tirando o Busquets, que está duas léguas éticas abaixo do Felipe Melo e do Van Bommel).
Os argumentos utilizados para se tentar extrair desta vitória um significado moral que ela não merece foram competentemente sintetizados neste útil post do Lourenço, do qual ele já está certamente muito arrependido, e do qual tenciono transcrever as passagens mais ofensivas sempre que seja apropriado. Comecemos pela frase que mais vontade me deu de ir destruir um prédio bonito: «obviamente, acho que seria um grande serviço ao desporto a Espanha ser campeã do mundo: provaria que se pode ganhar coisas a jogar bonito, algo extremamente necessário depois daquilo que se passou com o Inter este ano».
Elogiar o futebol praticado pela Espanha ao longo da competição como uma epítome do "jogo bonito" parece-me um caso clássico de confusão crítica (aliteração totalmente planeada): tendo-se detectado a inequívoca existência de talento, todos os frutos produzidos por esse talento são automaticamente classificados como positivos, como se não houvesse um livro chato na carreira de cada Philip Roth, ou como se eu próprio – eu próprio! - nunca tivesse escrito um mau post. Confrontado com a excelência técnica dos jogadores espanhóis (em que um dos defesas-centrais é melhor no passe, na recepção e no drible do que qualquer médio inglês, por exemplo), o espectador que se aborrece suspeita-se imediatamente de estar a caír no filistinismo, ou no iconoclasmo fácil.
O equívoco de base parece-me fácil de identificar. Se reduzirmos o jogo às suas três dimensões básicas - técnica, táctica e física - não é especialmente condenável promover o aspecto técnico em detrimento dos outros dois como o mais importante para o conceito de futebol bem jogado, porque é a capacidade técnica que permite o lance de ruptura, ou a variação inesperada - todos os elementos associados à criatividade, que permite quebrar a deriva mecanicista que o rigor táctico e a capacidade atlética tendem a impor.
O problema com a Espanha é o de ter utilizado - e isto é sem dúvida uma inovação - a capacidade técnica para impor no jogo o mesmo tipo de restrições que no passado e no presente das outras equipas eram impostas pela táctica ou pelo físico.
Num perfil recente de Federer na New Yorker, ele diz o seguinte sobre o jogo de Nadal: «I admire Rafa for that (...) The mental toughness of playing each point the same is amazing, but I could never play that way. I need change, I need a different point every time».
Vamos ignorar os diversos tipos de nojo que a segunda metade deste subtil raciocínio defensivo carlosqueiroziano provoca e concentrar-nos no essencial. A mais visível qualidade exibida pelo futebol espanhol no Mundial foi esta: a mental toughness de jogar cada jogada como se fosse a mesma. Mas o espectador precisa de mais, precisa de variação, precisa não exactamente de uma jogada diferente de cada vez, mas pelo menos de vez em quando. O que o kaku-tani faz é formatar e homogeneizar o jogo, transformando cada jogada numa repetição, razão pela qual a virtude que começa a ser mais elogiada no jogo Espanhol seja não a criatividade, mas a paciência. E a paciência, aplicada com consistência psicótica, é uma virtude que impressiona, mas não entusiasma.
Daí que esta declaração do Lourenço seja tão esfalfadamente equivocada: «o problema da aparente falta de eficácia daquela circulação de bola nasce da atitude de qualquer adversário (Portugal, Paraguai, Alemanha) que dá por dado adquirido a sua inferioridade e se limita a aguardar por um erro espanhol».
Passando por cima (muito por cima, atente-se) da sugestão que o problema da falta de eficácia é a "atitude" dos adversários (talvez ajudasse se eles se demonstrassem mais fair play fazendo um churrasquinho na linha lateral enquanto a Espanha jogava bonito), temos aqui um erro crucial de interpretação. Porque o cálculo racional por detrás da entediante circulação de bola da Espanha é precisamente esse: aguardar um erro do adversário. Isto foi assumido sem problemas por Xavi, e antes por Guardiola. A Espanha não procura controlar o adversário; procura anestesiá-lo. E é inevitável que anestesie parte da plateia também.
Conseguiram a proeza de levar ao extremo da eficiência um determinado processo técnico (tricotado de passes, lento e sem grande progressão), de caminho forçando uma exibição de destreza puramente técnica a produzir na percepção do espectador o mesmo efeito de uma exibição de destreza puramente táctica. E a posse de bola acaba por ter um intrigante efeito colateral: ao resguardarem-se fisicamente, os jogadores espanhóis conseguiram ser os melhores do torneio a fazer pressão alta, pois só precisavam de a exercer seis ou sete vezes por jogo, e estavam todos fresquinhos. A Espanha instrumentalizou uma dos mais impressionantes arsenais de técnica indididual de que há memória para jogar essencialmente um jogo defensivo e de baixo risco.
A ideia de que o futebol da Espanha “representa tudo o que o futebol deveria ser” também caiu por terra (com genuína pena minha) e confunde-me, inclusivamente intriga-me, adicionalmente vexa-me, que se defenda o contrário. O tutan-khamon pareceu, de facto, qualquer coisa como o futuro risonho do futebol, no curto espaço de tempo entre o Euro 2008 e a eliminatória do Barcelona com o Inter, mas agora que foi definitivamente baptizado, entronizado como movimento avant-garde, defendido por uma teoria estética, e sujeito a evangelização por apóstolos e críticos de Arte, assistimos a uma falência parcial do mesmo. O teste definitivo é este: se um conjunto de jogadores de qualidade possivelmente irrepetível, como Xavi, Iniesta e aqueles outros que lá andam, não conseguiram transformar o kiri-te-kanawa em nada mais do que um veículo para ganhar bem, mas chato, o modelo é insustentável como paradigma do futebol bonito. A falência é apenas parcial como mecanismo para ganhar jogos: sete dos oito golos da Espanha e para aí uns 90% das suas ocasiões de golo surgiram não de jogadas de envolvimento, mas sim de lances de bola parada, jogadas individuais de Villa ou Iniesta (sempre que desrespeitavam o metrónomo sedativo do resto da equipa), erros de arbitragem, e contra-ataques competentes - embora se possa argumentar que só a fadiga induzida pelo kon-tiki permitiu essa procissão de acidentes. O Lourenço fala, assumo que sem ironia, de uma “sensação de inevitabilidade” que se começa a instalar: “mais cedo ou mais tarde o golo vai aparecer”. Inevitabilidade foi algo que não senti em nenhum momento no percurso da Espanha, que, como o percurso de qualquer equipa vencedora numa competição a eliminar, foi sendo balizado por contingências favoráveis sucessivas (em número de seis, e não de sete, recordemos). O jogo com a Suiça não pode ser retroactivamente classificado como “um acidente”, porque, se é verdade que a Espanha podia perfeitamente ter ganho esse jogo por 1-0 (bastava ter marcado primeiro), também é verdade que podia ter perdido cada um dos jogos subsequentes por 1-0 (bastava ter sofrido um golo primeiro).
Como entretenimento, no entanto, a falência é total. O objectivo da circulação de bola da Espanha não é entreter o Lourenço nem a minha pessoa. E não o faz. O Lourenço, aliás, só pode estar muito cansado para achar aquilo “futebol bonito”; por amor de Deus Nosso Senhor, o futebol praticado pelo Benfica na época felizmente passada esteve muito mais perto do que é “futebol bonito” do que o muzak de auteur da Espanha. Xavi, uma das pessoas mais pragmáticas e honestas da civilização ocidental, teve a dignidade de sugerir que o futebol da Espanha pode ser aborrecido para o público neutral. Tem toda a razão. Tal como o Brasil de 1994, a selecção de que está espiritualmente mais próxima (o recorde de passes que o Xavi bateu pertencia ao Dunga), a Espanha teve o grupo de jogadores mais tecnicamente dotados do torneio, praticou um futebol personalizado que consiste em reter a bola até toda a gente estar devidamente narcotizada, e contou com um avançado no pico da sua forma terrestre - acrescentando a tudo isto o Iniesta no lugar do Raí. E ganhou, com toda a justiça, e sem necessidade de os erguermos agora a um panteão feito de andaimes.
O que a Espanha fez, utilizando processos diametralmente opostos, é exactamente o que o Inter de Mourinho fez nas eliminatórias com o Barcelona: levar um conjunto reduzido de qualidades específicas ao extremo da eficácia, para eliminar o máximo de variáveis e transformar cada situação de jogo na ocorrência mais segura possível. O que uns fizeram com bola, outros fizeram sem ela, mas o único espectáculo que interessava a ambos era a cerimónia de entrega do troféu.
Não há problema nenhum com o culto da eficiência; só acho extremamente ofensivo para a minha presente situação económica que se tente romantizá-lo.
No comments:
Post a Comment