Instituições como a APDSI, a Ordem dos Economistas e até o Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais anunciaram e promoveram a obra.
O Expresso de 17 de Março inseria mesmo uma referência com o suculento título “Afinal Karl Marx tem razão” completada com o destaque “Jaime Quesado recupera ensinamentos do filósofo alemão e aplica-os, no seu último livro, à Sociedade do Conhecimento”.
Fiquei entusiasmado já que, sendo o autor “gestor do POSC” Programa Operacional Sociedade do Conhecimento, um livro com tão ambicioso título trataria certamente das teorias de Marx à luz dos desenvolvimentos tecnológicos e organizativos da produção actual, ou vice-versa.
Quando consegui obter um exemplar deparei, logo na página 3, com uma reprodução do frontespício do “Das Kapital” seguida, em letra grande, da frase “Afinal, Karl Marx tinha Razão”. Tomei isso como uma confirmação das minhas expectativas.
Saltei para o fim do livro à procura da bibliografia, para saber que obras usara Quesado na sua análise. Não havia. Repito: não havia qualquer lista de livros consultados ou recomendados.
Fiquei um pouco surpreendido mas não desisti. Varri o livro de uma ponta à outra, são apenas 135 páginas em letra de formato grande e muitas fotografias, em busca das referências a Marx. Encontrei finalmente, a páginas 132, e resumem-se a isto:
“Nunca como agora Karl Marx passou a ter razão. Na moderna Sociedade do Conhecimento, os meios de produção, sob a forma de computadores, estão na posse dos trabalhadores que deles fazem o instrumento central duma geração de valor baseada nos imperativos da criatividade e da diferença estratégica. Caberá a estes “trabalhadores do conhecimento” imortalizados por Peter Drucker a difícil tarefa de demonstrar que a necessidade colectiva das organizações da utilização dos talentos tem que ser equilibrada com uma vontade individual dos talentos de se relacionarem com as organizações.”
E pronto. De Karl Marx estamos conversados.
Custou-me a acreditar que tudo se resumisse a uma “treta” de café ainda por cima muito mal contada.
Não é verdade que os computadores estejam “na posse dos trabalhadores” pois são na generalidade dos casos propriedade das empresas empregadoras, tal como não estão na posse dos trabalhadores as redes, a maior parte das bases de dados, a maior parte dos programas, e muitos outros componentes da infra-estrutura tecnológica actual.
Também é grave confundir computadores com criatividade pois pode não ter nada a ver uma coisa com a outra; pode-se ser muito criativo sem usar computadores e o inverso também é verdadeiro.
A utilização por Quesado da figura de Marx como “objecto decorativo”, para aumentar a visibilidade do seu livro, constitui um atrevimento detestável. Não se trata de considerar que Marx seja intocável para o comum dos mortais mas sim de exigir que um trabalho que tem pretensões ensaísticas seja feito com um mínimo de rigor e de seriedade. Este caso também revela uma total inconsciência já que o autor não parece perceber o ridículo a que se expõe.
Agora de um ponto de vista mais geral o livro aparece como uma manta de retalhos que tenta organizar, sob um mesmo “chapéu”, material que provavelmente terá sido usado em comunicações e apresentações avulsas.
É no entanto esclarecedor que esse trabalho de montagem apresente notórias faltas de cuidado; por exemplo o quadro de 5 pontos da pag. 67 aparece repetido com ligeiras diferenças nas pgs. 71 e 105. Há também lapsos de revisão que truncam palavras ou repetem bocados de frases (ex. pag. 71) tornando-as insondáveis.
Apesar dessas falhas que revelam uma menor consideração pelos leitores, não é condenável o facto de alguém reaproveitar trabalho seu anteriormente feito.
O que é mais gravoso é o facto de, para além de uma colecção de todas as “buzzwords” que soam nos círculos em que o autor se move, e abundantes citações dos autores estrangeiros de maior nomeada (prémio absoluto para a pag. 87 onde são citados 3 num único parágrafo), pouca matéria de fundo se descortinar no livro que não pudesse ter sido o conteúdo de um qualquer discurso de campanha feito por um dos nossos políticos “oficiais”.
Fez-me lembrar um programa que tínhamos na IBM, onde eu programava em COBOL ao tempo em que Quesado frequentava a primária, que a partir de tabelas de expressões e da escolha de um tema produzia tantas páginas de discurso quantas pedíssemos...
Se o autor fosse um cidadão qualquer que opinasse num “blog”, ou numa coluna de jornal, tudo se resumiria ao exercício da liberdade de expressão.
Tratando-se de um autor com particulares responsabilidades na execução de políticas relevantes, que gasta dinheiro dos cidadãos, e de uma obra tão entusiasticamente anunciada, constatar que a “montanha pariu um rato” não ajudará em nada as “Pessoas Normais” (a que o autor se refere na pag. 62) a confiar na clarividência das “Elites Locais” para as guiar perante “os desafios da globalização”.
A sessão de lançamento e o próprio livro contaram com a participação e mesmo os elogios de vários “notáveis” com destaque para o meio académico. Como é possível que tanta gente responsável, e tantas instituições, pactuem com a falta de rigor e de criatividade patentes neste livro de Quesado (apesar de por ele tantas vezes invocados) ?
A chave poderá estar nesta modesta declaração de Quesado sobre a sua própria carreira:
“Devo a riqueza única desse percurso, em larga medida confundido com a história mais recente do nosso país, à inelutável amizade de muitos “companheiros de geração”, imbuídos desde sempre de um ideal de reformismo positivo para o qual tenho tentado também dar o meu contributo.”
Será que os altos cargos públicos e o poder neles implícito, para além de todas as mordomias já conhecidas garantem agora, também, a irresponsabilidade intelectual ?
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