O Diário de Malinowksi pode não ser mais do que uma nota de rodapé na história da antropologia, mas é um texto-base do registo confessional. Deve ser lido (bem, por masoquistas, para começar) em tandem com a correspondência javarda entre James e Norah Joyce; ambas as obras geraram ferozes e inconclusivos debates sobre questões de propriedade e privacidade, e ambas flutuam num plano perpendicular às disciplinas que as enquadram: o Diário está para a etnografia como as cartas para a ficção modernista.
O Diário, ainda assim, consegue ser uma leitura mais incómoda: nas trocas de mimos do casal Joyce há uma dinâmina bi-direccional que, paradoxalmente, coloca o voyeur numa posição menos desconfortável; a imundície é privada, mas recíproca, e não exclui formalmente o olhar de terceiros. Já o Diário é insuportavelmente íntimo; é Malinowski a pensar sobre Malinowski perante os olhos de Malinowski. O resultado é um dos documentos mais dolorosos da história da espécie - o espectáculo do eu, em toda a sua brutal inadequação - e faz com que os espaços mais confessionais do cânone literário pareçam as cuidadosas encenações de control-freaks.
Um caso extremo de hipocondria moral, Malinowski usava o Diário como um instrumento de auto-ajuda, uma arma no seu interminável combate espiritual. A sua noção quase monástica de rigor profissional é constantemente comprometida por erupções de frivolidade e luxúria. As primeiras sempre sinalizadas pelos seus hilariantes relatórios de leitura: cada tarde perdida com um romance de cordel é penosamente confessada como um imperdoável momento de fraqueza. Quando pega nas Cartas Persas de Montesquieu, a reacção é típica: «não encontrei nenhuma das ideias que procurava, apenas descrições lascivas de haréns». Isto é duplamente tocante se considerarmos que o Diário é uma longa descrição lasciva do harém portátil que Malinowski transportava na sua cabeça.
Há dezenas de fantasias lúbricas, mais ou menos elaboradas, sobre ocidentais e nativos, mulheres e homens, crianças e objectos inanimados; a dada altura, as proezas sexuais de um par de cachorrinhos vadios são descritas em profuso e apreciativo detalhe. Todos estes instantes são imediatamente seguidos por manifestações de repulsa e exortações à pureza. É como ler uma versão anfetaminada das Confissões de Santo Agostinho: oh Lord, make me chaste, right now, before I bang everything in sight.
Elsie Masson, a sua futura esposa, é a terceira presença espectral que assombra o Diário, o talismã que Malinowski usa para afugentar as tentações. No princípio Malinowski vê-a como pouco mais do que uma solução para um problema técnico: mais um tópico no «sistema de proibições formais específicas» com que pretende espartilhar os seus apetites. Mas no último quarto do livro, as invocações assemelham-se cada vez menos a um recurso desesperado ou a uma declaração de intenções: e ali, a quente, na página, o leitor assiste embasbacado ao espectáculo degradante de um homem a apaixonar-se genuinamente pela ideia de monogamia.
Esqueçam o Tintim: se algum dia encontrar isto num raio de 10 metros das prateleiras das criancinhas, serei o primeiro a vir exigir boicotes.
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