No sábado passado, a minha filha, acompanhada de um grupo de amigos, desafiou-me a ir assistir a uma palestra ao Museu do Neo-realismo em Vila Franca de Xira, que tinha sido recentemente inaugurado pelo Presidente da República. Como tinha curiosidade em conhecer o museu e a conferência era proferida pelo Pacheco Pereira dispus-me a ir. Dei por bem empregue o meu tempo.
1 - A conferência
Integradas na exposição Batalha pelo Conteúdo do Movimento Neo-realista Português realizam-se mensalmente, naquele museu, palestras subordinadas ao tema Encontros e Desencontros com o Neo-realismo, cuja primeira foi abrilhantada pelo Pacheco Pereira.
O convidado começou primeiro por falar dos desencontros com o neo-realismo e daí arrancou para a sua experiência pessoal, principalmente da geração que passou pelos bancos da universidade em meados dos anos 60, afirmando que na maioria dos casos a juventude universitária da época não lia os livros dos autores neo-realistas porque tinha começado a despontar para outras leituras, rompendo com os conceitos quer estéticos quer ideológicos que enfermavam o movimento neo-realista e por tabela com a influência que o Partido Comunista Português (PCP) exercia no meio intelectual português.
Um dos vários exemplos apresentados foi a pateada que teve lugar numa sessão de cinema do Cine-Clube Universitário de Lisboa (CCUL), quando estava a ser projectado o filme Os Cavaleiros Teutónicos e da polémica que essa pateada provocou na altura, tendo havido mesmo um abaixo-assinado a defender o direito à pateada, apesar do cine-clube ser uma associação eleita democraticamente. Aquele abaixo-assinado foi subscrito por jovens universitários que viriam a integrar a actual intelectualidade portuguesa, dando como exemplos Eduardo Prado Coelho, Jorge de Silva Melo e Ivete Centeno. Pacheco Pereira afirmaria que a actividade dos cine-clubes, e do CCUL em particular, era dominada pelo PCP, que só exibiam filmes do Vittorio De Sica, de alguns realizadores americanos, como Elia Kazan, ou de origem soviética ou de Leste, fossem bons ou maus, o que, segundo ele, era o caso do filme referido. Esta pateada seria pois o pronuncio de um novo gosto cinematográfico e de uma maior abertura no campo do cinema.
Depois falou do advento dos maoistas, a que ele, Pacheco Pereira, pertenceu, e do estreitamento ideológico e estético que esse movimento político causou na formação cultural dos universitários no final dos anos 60 e início de 70 e, por último, abreviando muito, dos seus encontros com o neo-realismo, agora já homem feito e por dever de ofício leitor daquelas obras, e do valor que atribuía a algumas das opções estético-ideológicas dos seus autores. Conferência feita, passámos às perguntas e respostas.
2 - A pateada
Mal pensava Pacheco Pereira que na sala estava um dos dirigentes à época do CCUL e que viveu com grande intensidade este problema, ou seja, eu próprio, que era vice-presidente do cine-clube.
Já se sabe que pedi a palavra e respondi a Pacheco Pereira. Mas no calor da intervenção e passados tantos anos sobre a pateada já não me recordava de todos os pormenores da mesma. Chegado a casa fui retirar do armário os programas das sessões e os boletins do CCUL e tentei organizá-los de modo a que pudesse, com alguma fidelidade descrever o sucedido. Lamentavelmente não encontrei o abaixo-assinado referido, nem qualquer comunicado do cine-clube ou dos defensores da pateada a relatar os acontecimentos.
No entanto, tal como o afirmei na minha intervenção, o filme pateado não foi Os Cavaleiros Teutónicos (1960), que era de facto de um realizador polaco, Aleksander Ford, e que fazia igualmente parte do ciclo de cinema então apresentado – que decorreu entre Outubro de 1966 a Janeiro de 1967 –, mas sim Ventos de Revolta (1959), Sonatas no título original, do espanhol Juan Antonio Bardem, com o actor Francisco Rabal e que foi exibido em 21/12/66.
Aceito, no entanto, que o espírito orientador do ciclo levado a efeito pelo cine-clube é, aos olhos de hoje e provavelmente aos da época, intragável. Chamava-se O Cinema e a Sociedade, cuja primeira parte, onde se integravam os dois filmes referidos, era O Cinema e a História. No segundo boletim dedicado ao ciclo, e publicado provavelmente a seguir à pateada, eu próprio escrevi que aquele tinha a intenção de “percorrer as principais etapas da história da humanidade”, em que “os filmes servir-nos-iam não só para ilustrar determinadas relações económica, sociais e políticas, como, ao mesmo tempo, nos permitiam estudar a cultura... dessas épocas”, garantindo, no entanto, “que todos os filmes levados, além de servirem para ilustrar determinados factos históricos, tinham também interesse cinematográfico. Contudo, este aspecto foi em parte obscurecido pelo realce que demos à sua função ilustrativa do tema do ciclo.” E o boletim termina com um artigo justificativo da inclusão do filme pateado, em que se pergunta “pode-se ainda (1964) – data do artigo escrito para a revista espanhola Nuestro Cine – falar da validade da obra de Bardem?” e termina respondendo que não se pode “destruir de uma assentada a obra de um dos nossos poucos realizadores que manifestaram ao longo de toda a sua carreira uma atitude de total honestidade”.
Integravam este ciclo dois filmes soviéticos então muito exibidos pelos cine-clubes D. Quichote e Othelo, os dois já referidos, mas igualmente O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, um filme japonês muito visto à época, Harakiri, Tom Jones, de Tony Richardson, Vanina Vanini”, de Rossellini, e o Senimento de Visconti, o que demonstra alguma preocupação pela qualidade e uma pluralidade ideológica razoável.
É evidente que houve diferentes razões para realizar aquela pateada. Primeiro o filme de Bardem, por muito estimável que o seu autor fosse, era fraquinho, com rodriguinhos pouco aceitáveis para o gosto já da época e foi isso, seguramente, a principal razão para que a pateada tivesse tanto êxito. Segundo, uma certa juventude intelectual, oriunda na sua maioria da Faculdade de Letras, despontava nessa altura para outro tipo de cinema. Não aceitava o convencionalismo estético dos soviéticos, nem as boas intenções do Bardem e daí, provavelmente, os protestos de alguns dos nossos futuros intelectuais. Por último, e tenho a certeza que teve um peso bastante importante, as manifestações de esquerdismo-maoismo, que começavam por essa época a invadir a universidade. Deve provir daí a recordação do Pacheco Pereira de que a pateada teria sido ao filme polaco e não ao filme de Bardem.
Perante a pateada a direcção do cine-clube reagiu indignada. Penso que logo à saída, no átrio do cinema, houve uma troca de opiniões mais exaltada, tendo de seguida a Direcção do CCUL promovido uma discussão sobre o filme, na sede do cine-clube, em que o principal orador foi António Marques de Almeida, actualmente professor universitário e historiador, mas na altura, julgo, ainda a frequentar a universidade. Apareceram centenas de estudantes numa sede minúscula. Houve gente que se espalhou pelas escadas do prédio e, como era previsível, a análise histórica e cinematográfica do filme foi completamente substituída por meia dúzia de chavões e de ataques a quem tinha promovido a exibição daquele filme. Posteriormente, a Direcção do CCUL convoca uma Assembleia Geral onde este tema foi abordado, mais a discussão relativa ao direito à pateada. Penso que a PIDE esteve presente nessa Assembleia Geral, que, de acordo com a minha memória, foi um claro confronto entre facções próximas do PCP e dos esquerdistas-maoistas.
Reconheço, no entanto, e sem ter em meu poder os comunicados emitidos e o abaixo-assinado recolhido, que é muito difícil rememorar as diferentes opiniões em confronto. Seria interessante que o Pacheco Pereira, que me afirmou que os possuía, os pusesse à disposição do público num dos blogs onde escreve.
3 – Algumas conclusões muito a posteriori
O ciclo exibido correspondia a uma preocupação geral, no tempo do fascismo, dos cine-clubes e de outras associações culturais e até recreativas de procederem, com as limitações próprias da censura e da repressão, à formação ideológica dos seus associados. Como de um modo geral isso era feito por grupos influenciados pelo PCP, os grupos esquerdistas-maoistas reagiam negativamente. Daí muitas vezes as provocações, as pateadas e os insultos. No entanto, quando estes grupos detinham o poder, a sua política cultural e a formação ideológica ministrada era muito mais estreita e vesga. O próprio CCUL quando foi tomado, no início dos anos 70, por esses grupos foi muito mais sectário do que em anos anteriores.
O grupo dirigente do CCUL dos anos 1966/67, na altura da pateada, soube posteriormente escolher uma equipa para a Direcção seguinte, dirigida pelo Joaquim Brás, em que alguns dos subscritores do abaixo-assinado foram chamados à Direcção, estou-me a lembrar do Garcia de Abreu. Por outro lado, iniciou o seu mandato com a apresentação de um ciclo do cinema americano em que se exibiram filmes como a As duas feras, de Howard Hawks, A Corda, de Alfred Hitchcock, Serenata à Chuva, de Stanley Donen e Gene Kelly, Pistoleiros da Noite, de Sam Peckinpah e Jerry 8 ¾, do próprio Jerry Lewis. O que denota portanto uma clara percepção de que, ao contrário do que afirmou o Pacheco Pereira, era sensível à crítica e desejava dirigir-se a novos públicos e criar novos gostos, facto que foi posteriormente desvirtuado pelos maoistas que tomaram conta do cine-clube.
P.S. – Na pesquisa que fiz nos boletins do cine-clube verifiquei que o dono deste blog, o Fernando Penim Redondo, integrou como tesoureiro quer a Direcção da pateada (1966/67), quer a seguinte (1967/68), do Joaquim Brás. O Fernando poderá confirmar ou desmentir algumas das minhas afirmações.
Por outro lado, fui descobrir que um boletim do CCUL, editado em Junho de 67, tem uma reportagem do Fernando chamada Furadouro: mudar de vida, sim... mas como?, que era complementar a uma crítica ao filme do Paulo Rocha, Mudar de Vida, que se passava naquela localidade.Por último, recomendo vivamente uma visita ao Museu, já que me parece ser uma peça arquitectónica interessante, e com três andares dedicados à exposição referida inicialmente.
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