Tuesday, January 1, 2008

Isaac, the tailor

Por motivos que, na imortal formulação de Valdemar Duarte na Rádio Renascença, não vale a pena estar agora aqui a escalpelizar, passei a noite de ano novo no meu sofá, a beber ice-tea da Lipton, e a comer amendoins. (Os líquidos e salgadinhos consumidos no resto da casa também não vão ser agora aqui escalpelizados). Nada diz "réveillon" como três horas de sobriedade.
Houve sobriedade em abundância na RTP2, que passou a versão heterossexual de Brokeback Mountain, também conhecida pelo título original As Pontes de Madison County. Ao longo de um interminável flashback, foi sobriamente demonstrado que Meryl Streep era uma mulher e que Clint Eastwood era um homem. Nenhum deles era um cowboy hermafrodita alcoólico, facto que teria porventura resultado num filme mais imprevisível.
A RTP1 decidiu inovar. O conceito era "comédia em directo". Os executantes eram os Gato Fedorento. O shtick era "réveillon dos anos 80". Precedendo o programa propriamente dito, um especial de 45 minutos revelou a cornucópia de meios técnicos necessários para que "a comédia" pudesse acontecer "em directo". Um operador de câmara confidenciou à repórter de serviço que o seu equipamento tinha uma extensão de nove metros e pesava uma tonelada, mas disse-o num tom demasiado sóbrio para o efeito brejeiro desejado.
Grande parte do impacto inovador foi amortecido pela espionagem industrial da SIC e da TVI, que decidiram também elas transmitir em directo programas de humor com uma forte atmosfera anos-80, traiçoeiramente camuflados de concursos do século XXI. Se os Gatos tinham na manga um trunfo internacional chamado Sabrina (uma irónica e pós-moderna referência cultural para pessoas com 3 ou 4 anos a mais que eu), a TVI sacou de um astro chamado Isaac Alfaiate, um jovem saído de um conto de Bernard Malamud, que rapidamente se impôs como a grande estrela da noite.
Presos a um formato que não os beneficia (o sofá, e falo por experiência, não potencia a excelência criativa), os Gatos fizeram o seu melhor, mas a imaginação por detrás dos sketches da TVI era claramente superior. Isaac Alfaiate, ainda assombrado por memórias de Buchenwald, e acompanhado por outro personagem de nome "João Cajuda", lançou-se numa elaborada rotina chamada "Cama Elástica", que consistia em estar aproximadamente oito minutos aos saltos em cima de uma cama elástica. Júlia Pinheiro tentou pôr as coisas em perspectiva: "Já alguma vez tinhas saltado em cima de uma cama elástica?" "Não, nunca", confessou Isaac. "De uma cama normal já, mas de uma cama elástica, nunca". "Como é que foi?", perguntou Júlia, curiosa. "Não tenho palavras", explicou Isaac, eloquente.
A escassez de palavras era, aliás, generalizada. Na SIC, onde, pelo que consegui perceber, três famílias (Cardoso, Azevedo e Adams) testavam novos métodos de interrogação para a CIA, o problema era ainda mais sério. Os membros do júri indicavam constantemente, através de palavras, que não tinham palavras para descrever o que sentiam. Bárbara Guimarães, cuja capacidade para improvisar em directo faz Júlia Pinheiro parecer o Johnny Carson, bem insistia, mas ninguém era capaz de produzir as palavras que a situação merecia. Tozé Brito encolhia os ombros e dizia que não tinha palavras. As sobrancelhas de Tozé Brito, duas entidades autónomas que mereciam o seu próprio filme de David Lynch, contorciam-se silenciosamente. Clara de Sousa confessou também ela ter sido separada das suas palavras. A situação só não era desesperante porque, do outro lado de Lisboa, Júlia Pinheiro, em plena hemorragia lexical, produzia correntes ternárias de palavras para aplicar a qualquer coisa que lhe passasse pela frente. Um passo de dança não era apenas "belíssimo"; era "belíssimo", "mágico" e "poderoso". Um vestido não era apenas "belíssimo"; era "belíssimo", "magnífico" e "poderoso". Isaac Alfaiate, cujo talento apenas posso descrever como soberbo, inquestionável e poderoso, regressou ao palco acompanhado por uma rapariga chamada Magali, para uma rotina chamada "Salsa", que consistia em parodiar os passos de dança habitualmente associados à Salsa. Isaac, que é filho de um merceeiro judeu de Newark que deve dinheiro ao seu senhorio gentio, agarrou em dois dos membros de Magali e fingiu arremessá-la com violência na direcção do palco. Magali fechou os olhos e sorriu, o seu rosto rodopiando a centímetros do chão, perante o olhar aprovador do noivo, que se encontrava na audiência, e que a deve ter achado mais do que preparada para a vida conjugal.
Na SIC, a família Azevedo celebrava efusivamente o que assumo ter sido a sua vitória. Receberam cinquenta mil euros e foram logo enfiados num Hércules C-130 para Langley, Virginia, onde têm um briefing às mil e seiscentas horas. Abu Ghraib treme. Uma comovida Bárbara Guimarães anunciou que Camilo Castelo Branco iria cantar "Diamonds Are a Girl's Best Friends"; meros segundos depois, José Castelo Branco cantou "Diamonds Are Forever". Luisa Castelo Branco podia ter cantado "Diamond Dogs", mas estava na TVI, frustradíssima com a língua portuguesa. Isaac Alfaiate, com o olhar perdido no horizonte, pensava na sua infância remota, num shtetl lituano. Magali venceu e foi autorizada a casar-se com o noivo, ali mesmo, em directo. Os derrotados vão ter de passar pela vergonha e ostracismo social associados a um mero casamento com transmissão em diferido. 2008, segundo a opinião consensual, vai ser "excelente", "espectacular" e "poderoso". 2008 está já aqui. Não há palavras para o que vai ser 2008.

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