Excelente artigo publicado no
Público há um ano atrás.
Contagem decrescente para uma guerra civil
Foram 20 dias alucinantes. O Governo mandou bombardear a Rádio Renascença. Os trabalhadores da construção civil sequestraram o Governo e a Assembleia. O Governo entrou em greve. Os líderes do PS, PSD e CDS fugiram para o Porto, porque ia ser criada a Comuna de Lisboa independente. Os pára-quedistas ocuparam as bases da Força Aérea. A guerra civil ia começar. A reconstituição hoje possível do 25 de Novembro de 1975, a partir de entrevistas com os principais intervenientes e dos livros que, para deixarem o seu testemunho para a História, alguns deles têm publicado. Por Paulo Moura
Norte Quinta-feira, 6 de Novembro de 1975. À hora de jantar, o Conselho da Revolução interrompeu os trabalhos. Deveria ser um breve intervalo, naquela reunião conjunta com o Governo de coligação, mas prolongou-se, para conselheiros e ministros verem o debate na RTP entre Mário Soares e Álvaro Cunhal.
No ecrã a preto e branco, o jornalista envolto em fumo de cigarro anunciou os líderes dos partidos Socialista e Comunista. “O sr. dr. teima em querer fazer a revolução com uma minoria”, diz Soares, com um risinho. Cunhal responde rápido: “Não. O que eu quero é fazer a revolução com revolucionários.”
A reunião do Conselho da Revolução fora pedida pelo executivo. O primeiro-ministro, Pinheiro de Azevedo, cujo cognome era o “Almirante sem Medo”, exigia medidas para que o deixassem governar. Os militares não lhe obedeciam, os sindicatos e os comunistas organizavam manifestações de protesto todos os dias, os media divulgavam propaganda radical e apelavam à sublevação, principalmente a Rádio Renascença, que, em Outubro, fora ocupada pelos trabalhadores e se transformara em porta-voz da esquerda revolucionária. Era preciso fazer qualquer coisa.
Pinheiro de Azevedo e alguns dos conselheiros falaram sobre isto durante o intervalo, que se prolongou demasiado devido ao grande interesse do debate da RTP, dando azo a que fosse tomada, um pouco à socapa, aquela decisão, antes de todos voltarem à sala. A decisão terrorista.
“O Partido Comunista tem um pé no Governo e todo o corpo, e o outro pé, de fora, fazendo mobilização no país, para derrubar o Governo”, diz Soares na televisão. “Isto leva em linha recta o país para a confrontação armada e uma guerra civil.” Cunhal vai contrariando: “Nós também queremos evitar a guerra civil. Mas não se fale da disciplina da direita reaccionária…”
Soares continua: “O que o Partido Comunista deu provas, durante estes meses, é que quer transformar este país numa ditadura.” E Cunhal: “Olhe que não, olhe que não.”
Conselheiros da Revolução e ministros voltaram para a sala de reuniões, no Palácio de Belém. Prosseguiram os discursos e as queixas, até que o Conselho disse que sim a todas as sugestões do sarcástico primeiro-ministro. Uma delas, já combinada no intervalo, era a decisão terrorista de Estado e dizia respeito à Rádio Renascença. Às 4h30 da manhã do dia 7, sexta-feira, pouco depois de a reunião ter terminado, uma bomba era lançada, na Buraca, sobre os emissores da rádio rebelde, calando-a de vez. A ordem foi dada pelo Governo, com aval do Conselho da Revolução e através do chefe do Estado-Maior da Força Aérea, general Morais e Silva, e quem a executou foram forças pára-quedistas da Companhia de Caçadores 121, aquartelada no Lumiar.
Ora entre os “páras” o predomínio dos esquerdistas era cada vez maior. Activistas do PCP e dos partidos maoístas faziam agitação e propaganda junto dos efectivos das unidades especiais e altamente disciplinadas de pára-quedistas, fazendo-os sentir um peso na consciência por terem bombardeado a Renascença.
Sábado, 8 de Novembro. Apercebendo-se do mal-estar entre os “páras”, Morais e Silva, acompanhado pelo capitão de Abril Vasco Lourenço, foi à Base Escola de Tropas Pára-Quedistas, em Tancos, explicar a acção contra a “rádio vermelha”. Uma sessão de esclarecimento foi convocada para o pavilhão gimnodesportivo da base. O general começou a falar, ao lado de um embaraçado Vasco Lourenço (que sempre achou injustificável a operação Renascença), mas foi interrompido por um soldado, que lhe roubou o microfone para dizer: “Camaradas, vamos todos sair daqui. O meu general é um burguês, que já fez a sua opção de classe e não pode defender os nossos interesses. Portanto, não temos nada que estar aqui a ouvi-lo.” E abandona o pavilhão com a maioria dos soldados, para se irem juntar a uma reunião paralela, com os sargentos da base.
Humilhado, Morais e Silva ficou sem resposta, e acabou também por sair do recinto. Os oficiais presentes continuaram a reunião, decidindo que, por não haver disciplina possível, iriam apresentar-se no Estado-Maior da Força Aérea, para pedir a passagem aos seus quadros de origem. Nesse mesmo dia, 123 oficiais abandonaram a base de Tancos, deixando-a entregue a sargentos e praças, e instalam-se na base aérea de Cortegaça, perto de Espinho, com a ajuda e apoio do chefe da Região Militar do Norte, Pires Veloso. Morais e Silva, esse, jurou vingar-se.
Domingo, 9 de Novembro. Uma gigantesca manifestação de apoio ao VI Governo Provisório foi convocada para o Terreiro do Paço pelo PS e o PSD. Pinheiro de Azevedo, com Mário Soares e Sá Carneiro, ficou numa das janelas da sala do Estado-Maior da Armada. Mas mal o primeiro-ministro começou a discursar, denunciando o golpismo do Partido Comunista, rebentou uma granada de fumo no meio da multidão. Gerou-se o pânico, correrias, gritos, uns tentando abandonar a praça, outros deixando-se atropelar, outros tentando encontrar e castigar os culpados. Pouco depois, começou a ouvir-se um tiroteio vindo dos arcos da praça. A Polícia Militar tentava dispersar a tiro os desordeiros, provocando o pandemónio. Da janela, Pinheiro de Azevedo gritava: “O povo é sereno! O povo é sereno! É apenas fumaça! É apenas fumaça! O povo é sereno!”
Segunda-feira, 10 de Novembro.
Na base de Tancos realizou-se um plenário em que foi aprovada uma moção de repúdio pela operação contra a Renascença. Os sargentos assumiram a autoridade, reinstalaram a disciplina e treinos com intensidade redobrada, armaram uma companhia especial para garantir a defesa da base.
Terça-feira, 11 de Novembro. Dois sargentos pára-quedistas deslocaram-se ao Forte do Alto do Duque, onde se situava o quartel-general do Copcon (Comando Operacional do Continente). Pediram para falar com o chefe, Otelo Saraiva de Carvalho. “Meu general, vimos aqui oferecer-lhe 20 mil tiros por minuto”, disse um dos sargentos. Colocavam-se à disposição e sob o comando de Otelo, em troca do seu apoio à luta dos “páras”.
Quarta-feira, 12 de Novembro. Otelo manifestou publicamente o seu apoio aos pára-quedistas. Morais e Silva começara a executar a sua vingança. Numa série de ordens confusas, ia mandando passar à disponibilidade os praças pára-quedistas. Na prática, extinguiu os pára-quedistas.
Para explicar a sua posição, Otelo promoveu uma reunião entre Morais e Silva e o Presidente da República, Costa Gomes. “Meu general, eu quero dizer-lhe claramente que não posso apoiar esta decisão unilateral do Morais e Silva”, disse Otelo. “Temos uma força pára-quedista de centenas de homens perfeitamente disciplinados, uma força excelente para o combate, que pode actuar em qualquer situação, e agora, por despacho, este gajo elimina a força de pára-quedistas?”
“Mas eles não me respeitam”, defendeu-se Morais e Silva.
“Não te respeitam, porque tu participaste em ordens que não têm pés nem cabeça”, atacou Otelo. “Destruir à bomba os emissores da Rádio Renascença, só porque ela estava ocupada pelos trabalhadores? Não havia outra forma de resolver o problema?”
A delegação dos pára-quedistas que visitou o Copcon informou ainda Otelo que os oficiais baseados em Cortegaça estavam a enviar aviões para sobrevoarem ameaçadoramente a base de Tancos. “Estão a fazer voos a pique sobre nós”, disse um dos sargentos. “E, se houver alguma atitude ameaçadora, nós queremos rebentar com o avião.”
Otelo enviou então, como medida dissuasora, metralhadoras antiaéreas para os páras em autogestão.
No mesmo dia, às 5 da tarde, uma manifestação de trabalhadores da construção civil cercou o Palácio de S. Bento, onde o Governo se encontrava reunido, para apresentar ao primeiro-ministro o seu caderno reivindicativo. Em frente do portão da residência do primeiro-ministro, os trabalhadores colocaram uma enorme betoneira, obstruindo a saída. Ninguém poderia abandonar o palácio antes de terem sido atendidas as reivindicações, explicaram os delegados sindicais.
No interior, permanecia o Governo inteiro, mas também os deputados da Assembleia Constituinte, que estava reunida, o público que assistia à sessão e os funcionários do palácio. Uma delegação dos manifestantes foi falar com Pinheiro de Azevedo, que declarou não tencionar ler sequer o documento das reivindicações, enquanto se mantivesse aquela situação de pressão. Em resposta, representantes dos trabalhadores entraram no salão nobre e na varanda, onde instalaram um sistema sonoro e de onde iniciaram um comício permanente. Não iriam “arredar pé”, enquanto os seus problemas não fossem resolvidos, gritaram aos altifalantes. E com isso assumiram o sequestro do Governo e dos deputados, que duraria 36 horas, sem que as forças de segurança, comandadas pelo Copcon de Otelo, fizessem coisa alguma.
Vendo a situação entrar num impasse, com os trabalhadores a estenderem mantas e acenderem fogueiras para dormir e ficar ali por tempo indeterminado, Pinheiro de Azevedo veio à varanda apelar à dispersão, sob a promessa de estudar o caderno reivindicativo. Mas os manifestantes não o queriam ouvir, e gritavam e insultavam mal o primeiro-ministro abria a boca. “Fascista!”, chamavam eles, e o “Almirante sem Medo” perdeu a paciência: “Fascista uma merda!” Ou na versão de outras testemunhas: “Vão todos bardamerda!”
Só na manhã de quinta-feira, dia 13 de Novembro, os manifestantes permitiram a saída dos deputados, funcionários e elementos do público assistente à sessão da Constituinte. Os ministros continuaram sequestrados até que Pinheiro de Azevedo acabou por assinar um “compromisso” em que aceitava certas reivindicações.
Sexta-feira, 14 de Novembro.
Os líderes do PS, PPD e CDS fugiram para o Porto, onde participaram numa manifestação de apoio ao Governo, que acabaria com o assalto à sede da União dos Sindicatos. O país estava a dividir-se em dois. A região de Lisboa estava dominada pelas forças comunistas, e cada vez se tornava mais claro, para muita gente, que para as combater seria necessário fazê-lo a partir do Norte, onde os moderados e a direita detinham a supremacia, entre a população e nos quartéis. As forças democráticas tomariam posições na zona do Porto e os comunistas declarariam a Comuna de Lisboa. O país seria dividido em dois e seguir-se-ia a guerra civil.
Não chegou a haver consenso sobre esta solução, mas os líderes dos partidos democráticos, pelo sim pelo não, fugiram para o Porto com as respectivas famílias.
Foi Vasco Lourenço quem sempre recusou esta debandada das forças. A certa altura, numa reunião do Grupo dos Nove, o próprio Melo Antunes, que era o autor do documento, assinado por nove membros do Conselho da Revolução, que marcava posição contra o avanço do totalitarismo esquerdista na vida militar e civil do país, já estava a defender a retirada para o Porto. “Pronto, convenceram-me. Eu aceito”, disse Melo Antunes. Mas decidiu impor uma última condição: “Desde que o Vasco Lourenço também aceite.”
“Não. Eu não aceito. Isso seria a guerra civil”, disse Vasco Lourenço. “Vamo-nos preparar para reagir a qualquer tentativa que haja, e vamos manter o Costa Gomes do nosso lado. Porque o primeiro a saltar perde.”
E o Grupo dos Nove começou a trabalhar num plano militar para combater os comunistas e a extrema-esquerda, sempre na perspectiva de uma reacção contra um eventual golpe deles. Mantendo-se do lado da legalidade, teriam a garantia do apoio da maioria das unidades militares. Por isso era fundamental informar o Presidente Costa Gomes dos seus planos e ganhar o beneplácito dele. E depois esperar por um deslize dos esquerdistas.
Para conceber o plano militar, os Nove designaram Ramalho Eanes, embora Vasco Lourenço fosse o líder operacional do movimento dos moderados. Do outro lado, estavam todas as forças militares controladas pelo Partido Comunista e pelos partidos da extrema-esquerda, com a ajuda de todos os civis a quem seriam distribuídas armas, em caso de confronto. No seu total, contando com as lideranças organizadas e efectivas que possuíam, não constituíam uma força capaz de levar a melhor num conflito armado. Pelo menos era isto que os Nove pensavam.
Mas as coisas já seriam diferentes se Otelo assumisse a liderança de todo o sector da esquerda. O prestígio do comandante do Copcon era imenso. Para muitos, ele representava os trabalhadores, os mais fracos, os ideais do Movimento dos Capitães, encarnava a própria revolução. Fora ele a fazer o 25 de Abril, e a assumir as rédeas do poder quando todos disso se demitiam. Foi ele que permitiu e protegeu as ocupações de casas, de fábricas e de terras, que lançou as campanhas de dinamização cultural e de alfabetização. Ele, com toda a sua loucura e exagero, as suas frases bombásticas e assustadoras (”Fascistas para o Campo Pequeno”), era a figura moral e romântica, o símbolo da infinita generosidade de Abril. Mais do que ninguém, ele tinha a capacidade de arrastar as massas atrás de si. De fazer cumprir todas as ordens que desse, por pura lealdade, por puro afecto.
Por isso, Otelo era cobiçado pelas várias forças políticas. O Partido Comunista tentou por todos os meios tê-lo do seu lado, os esquerdistas acreditaram poder contar com ele, aliciando-o com os ideais de poder popular com que ele simpatizava. Até o CDS tentou levá-lo aos seus comícios, para tirar dividendos do seu poder de sedução. Mas Otelo, apesar de se ter deixado manipular em muitas situações, sempre resistiu ao recrutamento político. Nunca perdeu a independência. Naquela altura, era o comandante da Região Militar de Lisboa e do Copcon, uma estrutura que tinha sob a sua alçada todas as forças de segurança e especiais e ainda as unidades de todas as Forças Armadas, em caso de emergência. O Copcon fora criado pelo Presidente da República (Spínola, na altura). O seu poder era legal, além de imenso. Antes de começar a perder o controlo de muitas das forças, devido à acção e influência dos activistas civis da esquerda, Otelo foi o homem mais poderoso do país.
Agora era visto como o líder de todo o sector da esquerda, o único homem capaz de a unir para qualquer propósito, incluindo o de pegar em armas para defender “as conquistas de Abril”. Os apoiantes dos Nove (que incluíam desde a esquerda moderada do PS até à extrema-direita do ELP e MDLP) viam-no assim. Os comunistas e a extrema-esquerda viam-no assim. Só ele, Otelo, não aceitava esse papel.
Na semana seguinte houve manifestações contra e a favor do Governo, reuniões dos moderados, do seu grupo militar, reuniões do Copcon, com todos os elementos civis afectos ao PC e à esquerda radical que cirandavam em torno de Otelo, reuniões dos pára-quedistas em luta.
Vasco Lourenço informou Otelo do plano militar contra o eventual golpe da esquerda. “Eu garanto-te que nós não tomamos a iniciativa do golpe”, disse-lhe Vasco Lourenço. “Agora, não te envolvas em nenhuma iniciativa, porque se alguém der o primeiro passo, nós estamos em condições de lhe cair em cima. Toma cuidado com isso.”
A ideia era ganhar Otelo para o lado dos Nove. Porque eles estavam do lado da legalidade. Tinham, desde as remodelações havidas meses atrás, em consequência do Pronunciamento de Tancos, apoio da maioria do Conselho da Revolução, e tinham o apoio do Presidente da República. Além disso, Vasco sabia que Otelo compreendia as ideias da facção dos Nove. A liberdade, a realização de eleições e o respeito pelos seus resultados, e até a circunstância de os Estados Unidos e as potências ocidentais não tencionarem permitir a instauração de um regime comunista em Portugal, tudo isto eram argumentos a que Otelo era sensível. Mas o ideal do poder popular era mais forte. E também, segundo os seus detractores, a disponibilidade para ser influenciado pelos seus apaniguados.
Sábado, 15 de Novembro.
O movimento dos moderados teve uma reunião alargada no Palácio das Laranjeiras, em que volta a ser colocada a hipótese de fuga para o Norte. Jaime Neves, o comandante do Regimento de Comandos, que estava do lado dos Nove, mas tinha muitos apoios entre a extrema-direita, declarou de súbito: “Se vamos avançar para o Norte, é melhor ser já. Porque eu, neste momento, garanto que uns 200 homens vêm comigo. Daqui a uma semana ou duas já não sei se me restam alguns.”
Vasco Lourenço reagiu logo, saltando para o patamar das escadas onde muitos se sentavam: “Afinal que merda de comandante és tu? Afinal és um bluff. Vais mas é para a tua unidade e agarras bem os teus homens, e daqui a 15 dias vais ter os mesmos 200 todos contigo. Porque eu já disse que veto quaisquer ideias de fuga para o Norte.”
Na mesma reunião, discutiram-se as medidas a adoptar para fazer face ao agravamento das situações política, militar e social. Foi decidido que era preciso afastar Otelo do comando da Região Militar de Lisboa, substituindo-o por Vasco Lourenço. O segundo passo seria retirar poderes ao Copcon e, depois, extingui-lo. Sem poderes legais, Otelo (que tinha acabado de chamar contra-revolucionário ao Conselho da Revolução) poderia ainda ser perigoso, mas, pensavam os moderados, mais controlável.
“Um comando é muito efectivo quando o seu comandante tem, cumulativamente, muito prestígio e força legal”, pensava Ramalho Eanes. “Entre os subordinados, há um conjunto de homens extremamente determinados que estão ligados ao comandante devido ao seu carisma, e obedecem-lhe intransigentemente. Há outro número de subordinados, talvez maior, que não tem dúvidas em seguir as ordens daquele homem de quem gostam e a quem estão ligados, desde que isso não implique para eles e as suas famílias um grande perigo. O que quer dizer que cumprem as ordens, quando isso não implica consequências para as suas famílias, porque o fizeram num quadro de legalidade.”
Por causa deste princípio da sabedoria militar, Eanes acreditava que, fora da legalidade, Otelo teria menos de metade dos potenciais seguidores, se desse uma ordem de combate contra as forças apoiadas pelo Presidente da República.
No campo político, a decisão que se seguiu à reunião das Laranjeiras foi ainda mais ousada. Foi tomada ao almoço, no restaurante O Chocalho. O que deveria o Governo fazer para impor o respeito? Foi Gomes Mota, um dos mentores do Movimento dos Nove, quem deu a ideia: o Governo poderia suspender as suas funções até que lhe fossem dadas garantias. Entrar em greve!
Vasco Lourenço apoiou logo: “Compro! Compro essa ideia! O Governo vai entrar em greve!” Melo Antunes, sempre mais ponderado, ainda objectou: “Estás louco? O Governo entrar em greve? Onde é que já se viu isso?”
“Nunca se viu, vai-se ver aqui”, respondeu Vasco. “O Governo vai entrar em greve.” Logo a seguir telefonaram a Mário Soares, que acabou por concordar e convenceu os outros ministros civis. E Pinheiro de Azevedo partiu para Belém, para informar alegremente o Presidente da República da original decisão.
À saída, o almirante explicou aos incrédulos jornalistas: “Estou farto de brincadeiras. Eh, pá, fui sequestrado já duas vezes, pá. Estou farto de ser sequestrado. Não gosto. É uma coisa que me chateia, pá. Estou farto. Por isso entrámos em greve.”
Quinta-feira, 20 de Novembro.
Na reunião do Conselho da Revolução o Movimento dos Nove propôs a nomeação de Vasco Lourenço para a Região Militar de Lisboa. Otelo Saraiva de CarvalhoOtelo protestou, mas acabou por concordar. Vasco Lourenço também, com uma condição: que Otelo aceitasse a solução. Porque achava que seria completamente diferente Otelo chegar às unidades que o apoiavam e dizer: “Aceitei esta solução, porque é a menos má”, do que dizer: “Não concordei, mas impuseram-me esta solução.”
Otelo disse que sim, mas, quando chegou ao Copcon, deparou-se com a discordância dos seus oficiais. Telefonou a Costa Gomes: “Ó meu general, está aqui um problema tramado. É que grande parte das unidades não querem o meu afastamento, e não aceitam o Vasco Lourenço. Eu acabei por aceitar a posição deles. Era o meu voto contra todos.”
“É pá, mas isso já está decidido”, responde o Costa Gomes.
“Pois é meu general, mas o que é que eu hei-de fazer?”
No dia seguinte telefonou a Vasco Lourenço: “Eh pá, afinal, falei com a minha rapaziada, e eles não aceitam isso, pá. Tenho de ir explicar isto ao Costa Gomes e gostaria que viesses comigo.” Ao Presidente Otelo disse que as unidades de Lisboa e os seus comandantes não aceitavam Vasco Lourenço, que não tinha por isso condições para chefiar a Região Militar. Vasco respondeu que os comandantes não o queriam porque, com ele, acabaria a bagunça. O Presidente marcou nova reunião, para a decisão final, para dia 24.
No mesmo dia, no Ralis (Regimento de Artilharia Ligeira de Lisboa), uma das unidades dominadas pela esquerda, fez-se um estranho juramento de bandeira. De punhos erguidos, os soldados gritaram: “Juramos ser fiéis à pátria e lutar pela liberdade e independência. Juramos estar sempre, sempre ao lado do povo, ao serviço da classe operária, dos camponeses e do povo trabalhador. Juramos lutar com todas as nossas capacidades, com voluntária aceitação da disciplina revolucionária, contra o fascismo, contra o imperialismo. Pela democracia e poder para o povo, pela vitória da revolução socialista.”
Durante o fim-de-semana o PS organizou grandes manifestações contra o totalitarismo na Alameda Afonso Henriques, em Lisboa, e segunda-feira, 24 de Novembro, o Conselho da Revolução reuniu-se enquanto, em Rio Maior, os agricultores, orientados pela CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal), cortavam os acessos a Lisboa, dispondo árvores abatidas ao longo da estrada. O objectivo dos agricultores era exigir que o Conselho da Revolução acabasse com a “anarquia em Lisboa”.
Receando que as barricadas de Rio Maior provocassem alguma acção de resposta da esquerda, Eanes e os operacionais do plano militar colocaram-se em alerta. O Conselho aprovou, para o comando da Região Militar de Lisboa, a nomeação de Vasco Lourenço, que entretanto se considerou desvinculado da condição que impusera, em consequência da “traição” de Otelo.
A reunião acabou tarde. Otelo saiu e dirigiu-se ao Copcon. Eram 4h30 da manhã, mas o forte estava cheio de gente. Oficiais de outras unidades, civis, militantes dos vários partidos de extrema-esquerda. Otelo atira-se para o sofá onde já estavam sentados Costa Martins, um oficial da Força Aérea ligado ao PCP, e outros oficiais da sua confiança. Diz: “Passei aqui só para vos comunicar que deixei definitivamente de ser o comandante da Região Militar de Lisboa. O Vasco Lourenço assumiu o cargo. Eu fico apenas comandante do Copcon.”
Costa Martins levanta-se e diz: “Mas os pára-quedistas não vão aceitar esta situação, e vão ocupar as bases aéreas!” Otelo olha para ele. “As bases aéreas? A que propósito?”
“Isto cheira-me a golpada!”, diz outro oficial, Tomé Pinto. Otelo responde: “A mim também. Aguenta aí.” E chamou o major Arlindo Dias Ferreira, piloto aviador do Copcon, e o capitão Tasso de Figueiredo, da Polícia Aérea do Copcon, levou-os para uma sala à parte.
“Que significa isto? Que boca é esta do Costa Martins?”
“Otelo, isso não é nada connosco”, disse Arlindo. “É a luta dos pára-quedistas com o Morais e Silva, que quer dissolver as unidades.”
Otelo desconfia: “Se isso acontecesse, não poderia servir de pretexto para os Nove, que já encomendaram um plano de operações ao Eanes, para lançarem uma operação contra nós, e para liquidarem a esquerda? É que uma coisa é o apoio que eu dou aos páras, na sua luta contra o Morais e Silva. Outra coisa é eles ocuparem as bases aéreas, em resposta à minha demissão da Região Militar. Não sei se vocês estão a ver a ligação.”
“Não, está descansado, não é nada disso. Nós vamos tomar providências”, respondeu Arlindo.
“Então tomem as providências todas, senão há bronca.” E Otelo decidiu: “Estou estafadíssimo, não estou para aturar esta pessegada, vou para casa descansar. Vocês travem-me essa porcaria, se houver alguma coisa.”
“Vai, vai sossegado.”
Otelo atravessou a sala e saiu. “Já dei indicações ao Arlindo. Boa noite, rapaziada.”
Foi acordado ao meio-dia, pelo seu chefe de Estado-Maior, com a notícia: “Meu general, é melhor vir rapidamente para o Copcon, porque há aqui uma situação muito grave. Os pára-quedistas ocuparam as bases aéreas, de Monte Real ao Montijo, às 5h da manhã.”
Otelo dirigiu-se imediatamente ao Copcon. Mal entrou, o seu chefe de Estado-Maior apontou-lhe a sala ao lado: “Meu general, está ali o comandante da Força de Fuzileiros do Continente, à sua espera.”
Ribeiro Pacheco, capitão-de-fragata, de farda branca, impecável, fez continência. “Sr. general”, disse ele, “vim aqui para lhe dizer que tem a Força de Fuzileiros do Continente ao seu dispor. Mande, que nós obedecemos. Se quiser, nós vamos neste momento atacar o Regimento de Comandos da Amadora. Vamos lá e destruímos aquilo tudo.”
No Regimento de Comandos da Amadora, Ramalho Eanes tinha instalado o posto de comando do contragolpe. Costa Gomes assumiu o comando supremo das Forças Armadas e delegou os seus poderes em Vasco Lourenço, que atribuiu a Eanes o comando operacional. Estava tudo a postos para o combate. Se os fuzileiros atacassem os comandos, seria o início de uma guerra que ninguém podia prever quando e como terminaria. Alem dos fuzileiros, dos pára-quedistas, da Polícia Militar e do Ralis, não se sabia exactamente que outras forças poderiam sair em defesa da esquerda. Eanes, Costa Gomes, Vasco Lourenço, sabiam que tudo dependia de Otelo. Por isso, a primeira coisa que Presidente fez mal soube da saída dos páras foi chamar a Belém o comandante do Copcon.
Mas ele nunca mais chegava. Que iria Otelo fazer? Assumiria a liderança da facção que o via como o seu líder e iniciaria a guerra?
No Copcon, os dois homens olharam-se por escassos segundos. O capitão-de-fragata estava à espera da decisão, em sentido.
“Eh pá, ó Pacheco, aguente aí”, disse-lhe Otelo. “Não vai fazer nada disso. O senhor vai mas é daqui, mete-se no carrinho, vai lá para a Força de Fuzileiros, em Vale do Zebro, e fique lá, calmamente, a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Eu vou ver o que se está a passar. Fique a aguardar qualquer indicação do nosso general Costa Gomes.”
O chefe dos fuzileiros saiu. O chefe de Estado-Maior de Otelo disse-lhe: “O nosso general Costa Gomes já telefonou para cá duas vezes, pedindo para o meu general se apresentar em Belém."
“Diga-lhe que vou comer qualquer coisa e já vou para lá”, respondeu Otelo.
“Ainda bem que chegou, já estava a ficar aflito”, disse Costa Gomes quando Otelo entrou. E só então declarou o estado de sítio.
As operações foram lançadas por Eanes, usando os comandos de Jaime Neves. À excepção da Polícia Militar, na Calçada da Ajuda, onde o tiroteio que se instalou provocou três mortos, todas as acções decorreram sem violência. Na RTP, o golpe dos esquerdistas chegou a anunciar a vitória, numa emissão rapidamente interrompida.
“Aqui não há meias-tintas, não tenho mais tempo para conversar”, anunciou o jovem oficial barbudo Duran Clemente, à entrada dos estúdios do Lumiar. “Isto é tudo muito desagradável, mas, se for necessário matar, eu tenho de matar.” E, depois de ter trancado o director da RTP num gabinete, avançou para o estúdio, onde iniciou um discurso sobre as delícias do poder popular, acompanhado de slides alusivos. Às 21h10, os telespectadores vêem Clemente começar a esbracejar, em protesto contra os sinais que o técnico lhe fazia, e de seguida surgirem no ecrã as imagens do filme O Homem do Diners Club, de Danny Kaye, já emitido dos estúdios do Porto.
O golpe tinha acabado. A fase louca da revolução também. Uma depuração percorreria todos os níveis das Forças Armadas. Um reequilíbrio à direita seria reposto no Conselho da Revolução. Otelo e os seus oficiais seriam presos. O Partido Comunista obteve a garantia de que não seria ilegalizado, desde que abandonasse os impulsos golpistas e aceitasse o jogo eleitoral. Ramalho Eanes emergiria como o herói do 25 de Novembro. Pouco depois era eleito Presidente da República. A fase totalitarista da revolução dava lugar ao período democrático, ainda que à custa de uma boa parte do idealismo inicial. Entrou-se na época da normalização, da revolução possível.
Mas muito ficou por explicar. Quem deu a ordem aos pára-quedistas para ocuparem as bases? Foi o PCP que preparou o golpe da esquerda? Se sim, com que objectivo? Fazer pressão para que houvesse um reequilíbrio à esquerda na composição do Conselho da Revolução e Governo, depois da queda de Vasco Gonçalves? E, nesse caso, porque desistiu? A URSS terá recuado na sua promessa de apoio? Ou terá temido que a extrema-esquerda assumisse o controlo? A ser assim, terá sido esta uma forma hábil de se desembaraçar dos esquerdistas?
E Otelo? Terá traído os companheiros? Terá tido medo? Terá avaliado a correlação de forças e concluído que perderia? Terá planeado tudo, lançando os páras na sua aventura, para provocar a reacção dos Nove, porque previu que isso era a única solução? Isso explicaria por que se fechou em casa, das 5 da manhã ao meio-dia, sem atender o telefone. Terá sido genialmente maquiavélico, ou terá sido enganado? Ou terá feito o jogo dos Nove porque, no fundo, acreditava que eles representavam o regresso à verdadeira essência dos ideais de Abril?
Apesar de todos os mistérios que persistem, visto de hoje o 25 de Novembro parece antes de tudo uma imensa encenação, em que, tacitamente, todos, da extrema-esquerda à extrema-direita, conspiraram para o mesmo desfecho. Como se estivessem cansados, e optassem pela paz.