QUENTES E BOAS, MAS AGORA TODAS HIGIÉNICAS
DN, 27 de Outubro 2007
É o Outono que traz os vendedores de castanhas, ou são os vendedores de castanhas que chamam o Outono? Este Verão tardio está a custar a acabar e não convive bem com os primeiros alfinetes de frio outonais. Nem com as castanhas assadas. Quem é que já ouviu falar em comer castanhas assadas quando o termómetro ainda insiste em trepar até aos 25 graus, e o sol força a despir o blazer, o casaquinho de malha, o blusão de marca, a mudar o passo do lado luminoso da rua para o lado da sombra, a começar a dar ouvidos aos matracas do aquecimento global?
Castanhas assadas pedem friagem a apetecer abafo grosso, céu cinzento a pensar em pôr luto, vento daquele que nos pega à traição nas esquinas, aguaceiros de guerrilha, ora chove a potes ora deixa de chover, conversa fiada de transporte público sobre tirar os pulôveres da gaveta, limpar o pó aos radiadores, experimentar o edredão de penas novo, o escuro que já faz quando se sai do emprego, a vontade de chegar depressa a casa em vez de ficar a flanar nas esplanadas.
Tudo a fazer rima com as castanhinhas saídas do assador de barro do carro escalavrado do vendedor e embrulhadas num molho de folhas das Páginas Amarelas, mesmo assim ainda a aquecer-nos as mãos através do papel, até nos faz esquecer do preço que sobre de um Outono para o outro. Tanto poeta que fez versos com tanta gente e a tanta coisa em Lisboa, das varinas aos vendedores ambulantes, dos donos de tabacarias aos estivadores, e não houve nenhum que se lembrasse do assador, do carro, das castanhas e das páginas das listas telefónicas? É que agora já é tarde de mais.
Este Outono, Lisboa perdeu os carros com a chapa a pelar, os assadores fumarentos, o cartucho denso de nomes e números de telefones de lisboetas a acomodar as castanhas. Porque assim o decidiu a Câmara Municipal, e porque parece que é mais higiénico, mais moderno, mais vistoso e mais europeu, os carros das castanhas passaram a ser todos artilhados de inox e até faíscam quando o sol lhes bate em cheio; e as listas de telefone tão amigas das castanhas foram substituídas por uns sacos de papel com dois compartimentos, um para as castanhas que ainda não se comeram, outro para as cascas das que já foram comidas.
Dizem que assim as mãos já não ficam tão sujas e as ruas vão ficar mais limpas, francamente não sei. No saco lê-se: "Castanhas: mantenha a tradição" (eu preferia ler como dantes: Casa de Pasto Adega dos Lombinhos, R. Dourad, 218 864 887, ou A Reparadora Vidreira, Ger. R Grilo, 218 610 190, foi assim que descobri quem me emoldurou os quadros cá para casa durante bastante tempo, é verdade), mas tradição, agora, parece que só mesmo as castanhas em si, "quentes e boas" como dizia o fado, porque já mais ninguém o diz. É o Outono que traz os vendedores de castanhas, ou são os vendedores de castanhas que chamam o Outono? Este ano, um veio com calor ainda agarrado, e os outros a empurrar carros frios de inox.
Eurico de Barros
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