Se existe, neste momento, um maior festival de kitsch em exibição nos lares portugueses do que Os Tudors (Canal 1, ontem à noite) agradecia que me informassem o quanto antes. Com a possível excepção do Benfica-Shakhtar, foi a hora e meia de televisão mais divertida dos últimos tempos.
Aderindo ao rígido livro de estilo das piores séries históricas, grande parte do diálogo é escandalosamente expositivo. O tio do Rei é assassinado em Urbino antes dos créditos iniciais, o que suscita o seguinte comentário por parte de um conselheiro: «Majestade, o seu tio foi assassinado em Urbino.» Receando não ter processado tanta informação à primeira, Sua Majestade tenta confirmar os factos: «Estás a dizer-me que o meu tio foi assassinado em Urbino?» Um terceiro personagem é destacado para resolver a controvérsia, indicando que sim, efectivamente, o tio de Sua Majestade fora assassinado, e que toda a complexa situação ocorrera em Urbino.
Minutos depois, Catarina de Aragão pergunta a Henrique VIII porque é que ele não responde às cartas do seu sobrinho. O seu sobrinho é o Rei de Espanha, portanto há que introduzir esse dado no diálogo com o maior grau possível de subtileza: «Lá por o seu sobrinho ser o Rei de Espanha, isso não significa que eu...» etc, etc.
Entretanto, envolvido em intensas negociações diplomáticas com enviados de França e da Santa Sé, o Cardeal Wolsey (desesperadamente interpretado pelo filho de Satanás, Sam Neill, que também tem renda da casa para pagar) apresenta as más notícias: «Não sei se conseguiremos evitar a guerra.» «Então, por quem sois, entremos em guerra.» Diálogos destes recompensam décadas inteiras de devoção televisiva não-correspondida.
Henrique VIII, cujo actor recupera a panóplia completa de maneirismos usados por Joaquin Phoenix em Gladiator, é astuciosamente actualizado com alguns anacronismos inofensivos: boxers Calvin Klein, escanhoado Versace e peitorais firmemente ancorados no século XXI; não sei se foram restrições orçamentais ou falta de coerência artística que lhe negaram um par de óculos de sol e um Marlboro ao canto da boca. Nos primeiros 25 minutos, os boxers reais são três vezes removidos para a lubrificação real de cortesãs. O útero real recusa-se terminantemente a produzir varões. (Para evitar dúvidas, a esterilidade Dworkiniana da Rainha é confirmada por 78 personagens diferentes).
A decisão de transmutar um dos monarcas mais gordos das dinastias inglesas numa proto-rock star revela-se inspirada, e é levada até às últimas consequências, culminando numa destruição de mobília que deixaria Little Richard orgulhoso. Tal como uma estrela de rock, a qualidade das linhas de engate vai decrescendo em proporção inversa ao sucesso. Quando chega a altura de explorar a irmã mais velha de Ana Bolena, o melhor que Sua Majestade consegue é «Mostra-me então o que aprendeste nos teus anos em França.» Surpreendentemente, a resposta não envolve uma exaltação das lutas estudantis na Sorbonne, ou uma defesa da semana de trabalho reduzida, mas sim nova remoção vertical dos boxers Calvin Klein mais activos da Idade Média.
Os cameos vão-se sucedendo, à velocidade da luz: Thomas Tallis, Francisco I e, no mais corajoso golpe anacronístico (numa série que é fértil neles; conseguiram até matar um Papa duas décadas depois da data certa) o vigésimo-oitavo Presidente dos Estados Unidos da América, Woodrow Wilson, que entra em cena com a retórica idealista do costume: um tratado de paz universal, uma Liga de Nações, sufrágio feminino, e princípios humanistas aplicados às relações internacionais. O personagem em questão acaba por ser mais tarde estabelecido como Thomas More («I've read your little book, 'Utopia'»), que rapidamente se revela o grande falhanço criativo da série.
Evocar o passado num ecrã não é fácil, mas quando esse passado é rico em figuras como More, bastaria um texto minimamente competente e uma aderência relativa aos factos para resgatar o produto final à insipidez. O More histórico era um folião reptiliano, que, entre enviar alegremente Protestantes para a fogueira, ou apelidar o casal Lutero de 'Friar Tuck & Maid Marion', insistia em mostrar a nudez das suas filhas aos seus pretendentes, em nome da honestidade, e fazia piadas a caminho da sua própria decapitação. O Thomas More de Os Tudors é um taciturno tédiocrata, balbuciando frouxidões sobre a sua própria integridade. Uma oportunidade de ouro desperdiçada; sei de argumentistas que foram assassinados em Urbino por pecados menores.
A sessão dupla terminou com a execução do Duque de Buckingham, que passara o episódio inteiro a conspirar freneticamente para ter o seu contrato renovado e poder participar nos episódios seguintes. A estratégia falhou, e o Duque encarou o carrasco com o genuíno ar de pânico do actor que sabe estar prestes a regressar ao teatro local. Foi o momento mais comovente da noite.
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