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Sempre que uma pessoa importante se vê envolvida num escândalo surge logo quem declare enfáticamente que são inadmissíveis os "julgamentos na praça pública" (JPP). Essas declarações solenes não são habitualmente aplicadas aos casos que envolvem cidadãos comuns o que me leva a pensar que esses podem ser julgados em qualquer lugar.
Mais grave do que o elitismo desta teoria dos JPP é o facto de ela assentar num sofisma. Subrepticiamente induz a ideia de que tais julgamentos substituem os julgamentos dos tribunais. Como se alguém julgasse "na praça pública" aquilo que devia ser julgado nos tribunais. Como se alguém julgasse "na praça pública" em vez de julgar nos tribunais.
Tal ideia não tem qualquer fundamento. Os famigerados JPP não impedem nem se substituem aos julgamentos dos tribunais. Coexistem e são complementares mas obedecem a regras diferentes. É quando não se compreende a especificidade destes dois tipos de julgamento, e se pretende importar as regras de um para aplicar no outro, que começam as dificuldades e a confusão.
Os JPP acontecem inexoravelmente, constantemente, com base na informação de que cada um de nós dispõe. Quando eu desço no elevador em companhia do vizinho do quarto esquerdo, ou me esqueço de pagar o condomínio, ou atiro uma beata pela janela estou a ser objecto de um julgamento na "praça pública" do meu prédio. Os políticos, numa outra escala, vivem e sobrevivem dos "julgamentos na praça pública" ocupando uma boa parte da sua agenda a tentar melhorar a sentença que lhes será aplicada nas próximas eleições.
Quer nós queiramos quer não formam-se constantemente na nossa cabeça opiniões sobre coisas, factos e pessoas com base na informação a que vamos tendo acesso. Sobre os políticos também, claro, já que nos são servidos regularmente nos meios de comunicação (a propósito e a despropósito). É por isso que os escândalos com vertente judicial acabam por ser apenas mais um dado que juntamos a tantos outros já coleccionados sobre uma determinada figura pública, numa espécie de conta-corrente ou "julgamento" em curso. Portanto, ao contrário do que pretendem certos notáveis, estes "julgamentos" não os podemos evitar pela simples razão de que são inevitáveis.
Vejamos então em que medida as regras dos "julgamentos na praça pública" (JPP) diferem daquelas que vigoram num tribunal.
Nos tribunais os cidadãos, presume-se, são todos iguais. Nos nossos JPP diferenciamos o vizinho do empregado e o padre do político. Não esperamos o mesmo de todos eles e sabemos que todos eles têm capacidades diferentes de influenciar as nossas "sentenças".
Os tribunais lidam com informação categorizada e padronizada e só admitem os documentos que passam o crivo de apertados critérios. Nós, nos JPP, lidamos com informação não estruturada, avulsa e caótica cujo fluxo não controlamos.
Os tribunais são geridos por profissionais e com base em regras extremamente rígidas e complexas. Nós improvisamos conforme podemos as nossas próprias regras e temos que fazer os JPP enquanto tentamos equilibrar a nossa própria vida.
Resumindo: se é verdade que não podemos deixar de concluir coisas a partir da informação que nos chega também é verdade que não podemos transformar a nossa vida num tribunal nem ouvir o telejornal com um código processual nas mãos.
Mal estariam os habitantes de Chicago se tivessem que esperar por uma decisão judicial antes de mudar de passeio quando se cruzavam com Al Capone. Os tribunais demoraram muitos anos até conseguir condená-lo.
De tudo o que ficou dito resulta que os objectivos e missões dos tribunais são diferentes daqueles que estão ao alcance dos cidadãos comuns e dos seus JPP.
Os tribunais, com os seus métodos rigorosos, pretendem alcançar a certeza da culpa antes de condenar mesmo que isso demore muitos anos; nós, pobres mortais dos JPP, temos que lidar com a incerteza e a probabilidade para poder chegar a conclusões em tempo útil. Também por causa disso os tribunais aplicam sanções pesadas, que em certos países chegam a custar a vida aos condenados, enquanto que nós, juizes caseiros dos JPP, nos limitamos a venerar ou a embirar com os nossos sentenciados.
O problema das figuras públicas é que, como são conhecidas por muita gente, podem ser objecto de muitos julgamentos simultâneos de que resulte, por exemplo, perder uma eleição. Que lhes sirva ao menos de consolação que os milhões de juízes JPP só influenciaram o resultado das eleições na medida em que chegaram todos às mesmas conclusões e às mesmas sentenças.
Se os "julgamentos na praça pública" são constantes e inevitáveis, se os juízes que aí actuam não podem de modo algum ser considerados profissionais e se se regem por códigos caóticos, como evitar então que daí venham maiores males ao mundo ?
A regra básica deverá ser a de proporcionar a todos os interessados os meios de se expressarem, tendencialmente em igualdade de circunstâncias. Sonegar informação é uma forma de condicionar os "julgamentos na praça pública" tão eficaz como distribuir informação. Por isso a sonegação da informação só deverá acontecer quando estiverem em causa consequências muito graves. Só opiniões diferentes, múltiplas, contrastantes, em confronto, permitirão ao povo, que não é tão estúpido como alguns pensam, separar o trigo do joio.
Todas as tentativas para reduzir a pluralidade das opiniões expressas no espaço público (como por exemplo comprar estações de televisão para correr com vozes críticas) devem portanto ser repudiadas.
Aqueles que enchem o peito para invectivar os "julgamentos na praça pública", mesmo quando bem intencionados, não estão a defender nenhum elevado princípio mas apenas a tentar influenciar também a nossa opinião.
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