A igreja matriz está a abarrotar de gente para assistir ao concerto. Sucedem-se os oradores.
O senhor prior, muito coloquial, faz as honras da casa.
O senhor bispo da diocese, com os seus olhos pequeninos, desenrola umas matreirices.
O senhor presidente da câmara entra nas frases mas percebe-se que não sabe muito bem como há-de sair.
Cada orador tenta ultrapassar o anterior na lista dos agradecimentos. Começam sempre em "sua eminência" e vão descendo até chegar aos "prezados concidadãos".
Os bancos de madeira da vetusta igreja já esgotaram o tempo em que não se dá por eles e começam a provocar formigueiros e incómodos.
Entra em cena o responsável pela organização que a todos esclarece sobre a história do local em que nos encontramos. Várias gerações de beatos, confrarias e brasonados fizeram da matriz da vila um repositório de tesouros, insuspeitados nesta remota província.
Para ilustrar o discurso o sacristão transporta, penosamente, a custódia de prata dourada que um conde qualquer ofereceu à vila no século XVIII, e pousa-a com orgulho numa peanha do altar-mor. Uma peça preciosa que só se mostra em momentos lustrosos.
O estimado público é feito de engenheiros da câmara e de notários locais, gente que precisa de ali ser vista. Contém igualmente o volátil turista de segunda habitação, mal trajado e que faz gala do seu cosmopolitismo agitando o rabo nas cadeiras de pau.
Mas chegou finalmente a hora da música. Os virtuosos vão revelar-nos a devoção barroca do senhor Heinrich Schütz.
Acabam de se lançar no motete quando irrompe o estrondo de uma mota (inevitavelmente de alta cilindrada). Cruzou o adro, com os seus dois ocupantes, estancou à porta da matriz, e enquanto um aguarda o outro irrompe na nave e grita, abrutalhado:
- Todos com as fuças no chão !
A ordem, dada de supetão, aterroriza o estimado público que fisicamente não tem onde cair morto, salvo seja. Não há mármore que chegue para deitar tantos corpos, ainda por cima com a dificuldade adicional dos bancos corridos e do genuflexório.
O brutamontes, no intuito de dominar a algazarra, dispara a fusca e atinge S. Sebastião no altar da epístola numa premonitória coincidência. Gastando desnecessariamente munições num santo que já se encontrava suficientemente crivado de setas.
E o brutamontes, um bronco que parece não perceber que as peúgas são para enfiar nos pés e não na cabeça, avança pela coxia direito à custódia. Percebe-se que está prestes a convidá-la, sem direito a escusa, para dar uma volta na Suzuki.
Eis senão quando o careca lhe afinfa com o braço da tiorba. Metro e meio de madeira e cordas, num ruído plangente que precede na partitura o estrondo do brutamontes a cair no tabuado do altar-mor.
O virtuoso instrumentista foi de tal afinação que deixou o encapuçado sem conserto. Ele e o resto do estimado público.
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