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Extraído de "O Estado mitómano", Manuel Maria Carrilho, Diário de Notícias 20.05.2010
... Quanto à democracia, fala-se muito do desajuste dos parlamentos com a sociedade mediática actual, da descredibilização dos partidos políticos, ou da impotência que cresce ao nível nacional. Tudo isto é verdade, merece reflexão e exige respostas.
Mas há um outro aspecto que merece mais atenção do que tem tido, e que é o cada vez maior abismo que existe, nas sociedades contemporâneas, entre as características que definem um bom candidato, e as qualidades que são a condição sine qua non de um bom governante. Um abismo que tem aumentado constantemente, entre o circo das campanhas eficazes e o ascetismo da necessária preparação, entre a excitação que os períodos eleitorais exigem e a competência que o responsável exercício do poder requer.
Mais - na evolução recente das democracias, há uma sofisticação tanto maior em relação aos modos de chegar ao poder, e de se manter lá, como há descuido e o desleixo em tudo o que se refere à reflexão sobre o que fazer depois, quando se ganham eleições. Não admira que, quando isto acontece, depois não se cumpra o que se prometeu, não se antecipe o que não se conhecia, não se responda ao que não se previu.
E quando falta preparação, já se sabe o que lá vem: idolatra-se o concreto, recorre-se ao activismo e invoca-se, claro, o pragmatismo. Esquecendo-se, todavia, que há um bom e um mau pragmatismo. E que são muito diferentes: o bom é o que é capaz de ligar o conhecimento, a acção e as suas consequências, de uma maneira coerente e responsável. O mau é o que esconde a ausência de estratégia e de visão, atrás das mil faces do calculismo táctico.
As sociedades tornaram-se, de facto, extremamente complexas. Mas isto, em vez de estimular, parece que assusta os candidatos, que cada vez mais se limitam a declinar entre si pequenas variações de cartilhas idênticas, perante (é preciso dizê-lo) a passividade e a cumplicidade dos cidadãos. Não admira assim que não se tenha dado qualquer atenção a quantos anteciparam as dificuldades que atravessam hoje os Estados, com problemas a acumularem-se há uma década, entalados entre ilusões eleitorais e impotências governamentais.
Foi neste ponto verdadeiramente nevrálgico que Jacques Attali (que acaba de publicar um vigoroso alerta Tous ruinés dans dix ans? ) tocou, ao falar do Estado mitómano que tem vindo a criar-se nos últimos tempos, nomeadamente na Europa. Chegou-se, diz Attali, a uma situação em que, "incapaz de fazer respeitar as normas que estabelece, de cobrar as receitas de que tem necessidade para desempenhar as suas funções, o Estado mente a todos, produzindo textos inaplicáveis e distribuindo dinheiro largamente imaginário. Como todos os mentirosos, acaba a mentir a si próprio: torna-se num Estado mitómano, que acima de tudo não quer saber se o que diz é ou não é verdade. (…) O Estado, não tendo já meios reais para agir sobre o mundo, contenta--se em produzir textos e em gastar o dinheiro que não tem. Ocupado a mentir a si e aos outros, torna-se num Estado mitómano. E, como todos os que são atingidos por esta doença mental, mente cada vez mais - a inflação legislativa e o défice público são as formas que toma, na política, o delírio verbal do mitómano". (L'Express, 29/04).
Vale a pena reler, e pensar - porque o Estado do século XXI está, sem dúvida, por inventar.
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