Friday, January 7, 2005

A depressão como álibi


A depressão como álibi

por Eduardo Lourenço, in DN, 2/1/2005


O que um país como o nosso, que não está no centro da tragédia que neste momento suscita o horror e a compaixão universais, pode ou não pensar da sua caseira situação, mesmo se fosse «depressiva», como alguns a sentem ou sobre ela escrevem, é de escasso interesse. Tem mesmo qualquer coisa de escabroso. Não tendo o sentimento de que o nosso país esteja a braços com qualquer coisa que, de longe ou de perto, se possa considerar uma «depressão» (crise económica grave, crise política séria, crise moral dolorosa), a questão de a ultrapassar não tem verdadeiro sentido. Não somos o Haiti nem o Darfur. Somos uma nação que faz parte do continente mais privilegiado da terra, e ocupamos nele o lugar que a nossa História ou as nossas capacidades merecem ou justificam.




Estamos em democracia, podemos resolver na ordem política, e em paz, os conflitos que nessa ordem são naturais, o que nem todos os povos da mesma Europa estão em condições de fazer.

Se alguma coisa é preocupante, é a displicência, para não lhe chamar inconsciência, com que gozamos e abusamos duma «situação» que devemos mais ao dinamismo geral da Europa do que ao nosso próprio. Mas nem isso é razão para nos inventar «depressões» de cada vez que o excesso dos nossos sonhos nos confronta com a realidade, ao fim e ao cabo, bem aceitável, que é a do Portugal de hoje quando o comparamos ao das carências gritantes de há apenas 20 anos. Não acrescentemos aos nossos handicaps, bem reais ainda em matéria de saúde, de educação, de investimento científico, as crises de decepção periódicas, puramente imaginárias, de cada vez que nos apercebemos de que não somos exactamente a nação eleita com que a justo título sonhamos e toda a gente, aliás, deve sonhar. Se queremos estar sempre a escrever Os Lusíadas, para ter a sensação de imitar os homens dessa época, e nem sequer o ler, devemos pagar o preço confrontarmo-nos com os desafios da realidade, tentando estar à sua altura.

Houve momentos em que a litania da «depressão nacional» se pôde justificar. O nosso atraso era visível a olho nu. Assim éramos ou estávamos apenas há meio século. Esse atraso não foi inteiramente recuperado, como o imaginamos, naquilo que interessa ao futuro duma nação moderna europeia, mas sabemos agora melhor medir esse atraso e como proceder para o atenuar. Não é um esquizofrénico recurso ao álibi da «depressão» que nos curará dele. Isso é apenas complacência de gente que desejaria que o futuro lhe caísse do céu dos outros como um disco DVD, sem esforço nenhum. Teremos o que merecemos, não mais. De qualquer modo, não iremos para o céu da História global em wagon lit, como em tempos os personagens privilegiados de Eça. Iremos a pé, devagar, democraticamente.

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