Sunday, September 18, 2005

A propósito das "autárquicas" (em que não votarei)




LISBOA

a minha cidade comove-me
pois estes passos que se cruzam
vêm de há séculos caminhando
sobre estas pedras que ressoam

esta teia de gente sem destino
de trabalho de crime ou de cantigas
ponto de encontro átrio e viagem
de quem caminhando pisa sempre o mesmo chão

e não há outra cidade para mim
por mais gente que cruze as suas ruas
pois só minha cidade me alimenta
com a fome e o suor dos que passaram

só aqui se cumpre a minha vida
mais um passo do passado para o futuro
só aqui eu consigo acreditar
que tudo o que fazemos faz caminho

aqui é que eu faço filhos com os meus velhos sapatos
de quem sempre me despeço com desgosto
e nada me anima como subir estas calçadas
arfando e respirando este ar poluído

aqui é que me gasto como quem gasta as solas
e a morte faz sentido junto destas pedras
que me protegerão como uma mãe
sossegada e fresca como um beco

aqui onde o vento cheira a mar
é que apodrecemos voluntariamente
com o desplante dos cigarros
com que queimamos a impaciência

aqui é que os sons e as cores
falam a língua da memória
e só posso desculpar aqueles que partem
para não morrer de fome

aqui é que devemos entregar-nos à vida
para ela fazer de nós o que entendermos
aqui partilhando as ruas com todos
pois na rua somos quase iguais

aqui na nossa cidade não há lonjuras
entre nós só os preconceitos
a nossa cidade é o sonho quase feito
a grande festa que só espera um foguete

nela viajo estas noites clandestinas
que são o fel de cada manhã
na minha boca que não desiste
do segredo escrito pelas solas dos séculos

sobre as pedras lisas como crâneos semi-enterrados
continuaremos a cruzar-nos em todos os sentidos
da rosa dos ventos e da palavra
e só por causa disso eu não me canso

Lisboa, 1979
(Publicado em "O Diário", 1987)

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