Sunday, April 22, 2007

Bryan Ferry e a estética fascista

(imagem: Bryan Ferry, demonstando a célebre técnica fascista dos dois microfones e da franja assimétrica)

Quando ouvi esta semana que a comunidade judaica britânica estava ofendidíssima com Bryan Ferry e lhe exigira um pedido de desculpas público, preparei-me imediatamente para juntar a minha voz ao coro de protestos. O álbum de versões de Dylan não é uniformemente péssimo, mas algumas das faixas transpõem efectivamente a barreira do que é tolerável mesmo em sociedades democráticas onde a liberdade de expressão é um valor inegociável. O que não implica apenas, convém frisar, a comunidade judaica: Bob Dylan é património mundial e a forma atroz como a palavra 'avenue' é pronunciada na versão Ferryesca de «Just Like Tom Thumb's Blues» é algo que afecta toda a raça humana. Um pedido de desculpas era o mínimo exigível.
Meia dúzia de noticiários depois, contudo, tornou-se claro que a minha interpretação das exaltadas manchetes dos tablóides tinha sido algo precipitada. A controvérsia fora despoletada por uma entrevista de Ferry a um jornal alemão, durante a qual se referiu em termos elogiosos à iconografia nazi. (Pode encontrar-se uma boa colecção de recortes sobre o caso no Provas de Contacto).
Há um debate interessante, que não é novo, nem nunca foi satisfatoriamente encerrado, sobre a separação entre o estético e o ideológico, mas não posso ser o único a pensar que uma entrevista do ex-vocalista dos Roxy Music não é o melhor dos catalisadores para o seu reatamento. Se cedo à tentação é apenas porque sou fraco.
Antes de mais, um disclaimer: estou muito longe de ser um perito na história cultural ou militar da Alemanha nos anos 30 e 40 (ao contrário do meu primo Miguel). Sobre os méritos específicos dos documentários homoeróticos de Leni Riefenstahl e da arquitectura asséptica de Albert Speer haverá certamente quem tenha coisas mais interessantes a dizer (pessoalmente, não retiro grande fruição estética de competições de mergulho nem de Legos gigantes).
Impõe-se também uma reiteração do óbvio: uma parte substancial de produção artística que interessa e prevalece é feita por rematados canalhas - como sabe qualquer admirador da prosa de Burroughs ou da poesia de Pound. Se eu decidisse filtrar a arte que consumo através das opiniões pessoais ou tendências ideológicas dos artistas que a produziram, as minhas estantes estariam cobertas de pó - e pouco mais.
Dito isto, também não me parece sensato cercear a polémica com a ligeireza tentada pelo porta-voz de Ferry. Há uma enorme distância entre admirar um poema modernista separando-o do anti-semita espancador de mulheres que o escreveu, e elogiar todo um programa estético indissociável do movimento político que o originou. O nazismo foi, no célebre epigrama de Benjamin, a estetização da política, e se isto não é um argumento consensual, carrega legitimidade suficiente para evitar que um tão afoito pano caia sobre o debate.
É inteiramente possível descontextualizar o Triumph des Willens da sua intenção propagandística (embora Susan Sontag tenha montado um argumento persuasivo contra o gesto), tal como é possível descobrir uma beleza terrível numa explosão nuclear sem que isso implique qualquer juízo aprobatório sobre Nagasaki. Mas se atentarmos nas declarações de Ferry, ele não se refere apenas aos filmes de Riefenstahl nem às maquetes de Speer: são também as bandeiras, as insígnias, os uniformes e, crucialmente, os desfiles, que ele caracteriza como "just amazing" e "really lovely". E aqui divergimos. Tenho sérias dúvidas que uma resposta estética ao comício de Nuremberga possa acontecer num vácuo histórico; é necessariamente influenciada pelo que sabemos sobre o evento, pelos seus prefixos e sufixos tangíveis. Bryan Ferry está no seu pleno direito de assistir a uma demonstração impecavelmente encenada de força, disciplina, homogeneidade racial, e respostas em massa a um único estímulo que é a figura de Hitler, e achar que tudo aquilo é "really lovely". No meu caso, inclino-me mais para o "fucking terrifying", ou, em dias mais solarengos, pelos menos para o "quite unsettling".
Não sendo de todo, como já disse, um perito na matéria, parece-me significativo que a influência de Riefenstahl se faça notar não tanto em outros cineastas (se ignorarmos George Lucas, o que devemos sempre fazer, e talvez Ridley Scott, não me ocorre mais nenhum) mas sim na publicidade televisiva das décadas de 50 e 60. O que atraiu os directores comerciais da época foi a mesma capacidade de vergar multidões a um impulso único que viria a atraír outra estrela musical obcecada com a gestão da sua imagem pública: David Bowie, que já é um veterano nestas andanças da iconografia nazi. O factor ideológico, nele tal como em Ferry, é evidentemente irrelevante. O essencial eram os casacos de cabedal e os penteados anatómicos das SS, bem como o elemento de xamanismo e performance-art dos comícios nazis, que já foram descritos como os primeiros concertos de rock da História.
Tudo isto é ilustrativo de uma das mais perigosas características dos sistemas totalitários: o fascínio que o elemento visual e utópico exerce sobre mentes fundamentalmente sãs, mesmo aquelas equipadas para sentir repulsa pelas consequências práticas da respectiva ideologia.
Mas reafirmo a minha crença de que nenhuma destas considerações terá passado pela cabeça impecavelmente penteada de Bryan Ferry. Ele limitou-se a expressar uma ideia muito pouco ofensiva e muito pouco original: a de que os meios de propaganda nazis eram de uma eficácia tremenda. Fê-lo de uma forma pouco profunda e numa linguagem banal. E embora a superficialidade e a banalidade fossem duas marcadas características nacional-socialistas, isso não faz de Ferry um candidato a Eichmann do séc. XXI, a não ser para os praticantes deste straussiano desporto.
Aquilo com que certas pessoas decidem ofender-se é que nunca deixará de me surpreender.

(E vou esperar sentado pelo pedido de desculpas que realmente se impunha: "down on Rue Morgue Avenuuuuuuu"?).

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