Thursday, December 20, 2007

A semelhança e a diferença


"Iguais são os espectadores do jogo de polo aquático ou os jogadores de cada uma das equipas, entre si, embora a identidade de uma equipa só tenha sentido pela diferença relativamente ao adversário. O jogadores das duas equipas são todos idênticos se contrapostos ao árbitro ou aos espectadores. Pertencemos simultaneamente aos vários conjuntos com que nos identificamos em cada momento. Essa lista define socialmente quem somos. Pertencemos, por exemplo, ao conjunto dos espectadores de "Palombella Rossa", lado a lado com comunistas em crise e com yupies confiantes. Quando saímos a porta do cinema podemos integrar-nos num ou noutro desses conjuntos; isto todos os dias, a todas as horas, até fazermos todos parte do grande conjunto dos mortos."

Escrevi estas notas há mais de 15 anos quando vi o filme do Nanni Moretti pela primeira vez. Feito em 1989, "Palombella Rossa" caíu em cheio sobre a crise desencadeada pela queda do muro de Berlim. Era muito fácil nessa época resumi-lo à pergunta "que significa hoje ser comunista ?", pronunciada pelo protagonista Michele, um comunista jogador de polo aquático que um acidente rodoviário deixara amnésico. Havia a tentação de tomar "Palombella" como uma dissertação sobre a decadência do PCI.

O filme reapareceu agora em DVD e somos inevitavelmente tentados a verificar a impressão que nos causa hoje. A primeira constatação é que a pergunta de Michele continua sem resposta. "Palombella" não a dá e penso mesmo que não tinha essa intenção. A sua pergunta, não formulada, é muito mais vasta; o que fica de nós quando desaparecem os laços que nos ligam aos clubes, igrejas e partidos ? é possível intervir socialmente sem ceder ao clubismo e ao fanatismo ?
A sociedade, como sabemos, não é nada tolerante com tais situações.

O facto de o amnésico Michele ser comunista está longe de ser irrelevante mas um filme muito parecido podia também ser feito com um militante da Democrazia Cristiana na mesma situação de perda da memória. O que verdadeiramente está em causa é, por uma razão qualquer, perdermos a memória dos códigos e rituais que caracterizam a nossa pertença aos grupos com que nos identificamos e que nos definem. Na história de Michele, que podia perfeitamente ser vivida por qualquer um de nós, ele tenta recuperar a sua identidade através da redescoberta dos códigos de cada um dos grupos a que pertence mas acaba por descobrir que esses códigos, por serem apenas formalismos, não lhe dão a chave de que precisa.
O próprio filme, construído sobre uma codificação que Nanni Moretti não revela, obriga o espectador que o queira "compreender" a viver uma perplexidade similar à de um amnésico.

As frases "tu és como nós" e "sabes em que somos diferentes ?" atravessam todo o filme, ditas por diferentes personagens, impondo o tema da semelhança, da diferença e da necessidade que elas têm uma da outra. Essa dialéctica pode ser ilustrada com a militância comunista que causa tanta perplexidade a Michele: os comunistas constatam as injustiças (diferenças) sociais e propõem a igualdade (semelhança) dos homens. Para isso organizam um partido "diferente" dos outros que no entanto precisa de convencer os trabalhadores a desenvolver uma atitude "semelhante" contra a opressão económica.Michele repete que "os comunistas são como os outros" acrescentando, após uma pequena pausa, "mas também são diferentes".

Para Michele torna-se insuportavel lidar com o uso desleixado das palavras no preciso momento em que se confronta com a tarefa de reconstruir as suas referências de leitura do mundo. Ele grita "as palavras são importantes" e mais tarde, talvez já sem esperança, "um conceito logo que é escrito torna-se uma mentira" e "tem que se inventar uma linguagem nova".

No que toca ao equilíbrio entre "semelhança" e "diferença" as palavras são um caso paradigmático; não podem ser usadas nem de forma demasiado convencional (semelhante) nem de forma demasiado criativa (diferente) sob pena de não haver comunicação. Para Michele, que perdeu as suas memórias/referências, todas as palavras serão portanto o ponto de partida para uma linguagem nova e uma forma nova de entender a realidade.

A aventura dessa linguagem nova tem, para Michele como para nós, o preço da incomunicabilidade.

No comments:

Post a Comment

Blog Archive