Recordo que o próprio Álvaro Cunhal reconheceu: se houve alguém com quem o PCP foi injusto, foi com ela e o seu marido Fernando.
A ler mais sobre esta mulher excepcional nos blogues
As Causas da Júlia,
Abrupto,
Artesão Ocioso e
As Brumas da Memória, bem como o obituário no
Público e um resumo biográfico numa edição de há dez anos do
Expresso, por ocasião dos 25 anos do 25 de Abril, que coloco aqui.
Uma mulher de coragem
Foi locutora na emissora da Frente Patriótica de Libertação Nacional, em Argel, e destacada militante antifascista. Aos 82 anos, Stella Piteira Santos, recorda alguns episódios mais marcantes da sua vida na luta contra a ditadura, pela liberdade
Stella Piteira Santos PARTICIPOU na fuga de Pável, ajudou prisioneiros dos campos de concentração, conduziu Humberto Delgado na noite de Beja, foi perseguida, presa e exilada. Falamos de Stella Bicker, também conhecida como Stella Fiadeiro e, em mais de metade da sua vida, Stella Piteira Santos. Os refugiados portugueses de Argel chamavam-lhe, simplesmente, «a mãe Stella». «Amigos, Companheiros e Camaradas. Fala a Voz da Liberdade, emissora da Frente Patriótica de Libertação Nacional.» A voz tremeu-lhe, engasgou-se, quando disse estas palavras de abertura das emissões radiofónicas dos exilados portugueses em Argel. «Ainda hoje me comovo quando digo isto» , conta Stella Piteira Santos, a primeira locutora da «Voz da Liberdade», agora com 82 anos, mergulhada em memórias que ilustram grande parte da história da luta pela democracia.
Até chegarem a Argel e porem «no ar», em finais de 63, uma rádio de opositores ao regime salazarista, Stella e o marido, Fernando Piteira Santos, tinham feito um longo percurso, que incluiu praticamente a separação do casal. «As emissões eram gravadas num velho estúdio da rádio oficial da Argélia, e montadas pelo sistema do metro e tesoura» , recorda Manuel Alegre, que se juntou à FPLN após a prisão em Angola, continuando o trabalho iniciado por Stella aos microfones. As emissões que «fizeram história» foram: o primeiro directo, aquando da doença de Salazar, e uma entrevista a Amílcar Cabral. Alegre recorda que, em todas as iniciativas da FPLN e no apoio aos exilados, Stella estava presente e activa. «A sua casa era uma referência para todos nós. Ela era o laço familiar que se refazia, era a 'mãe' que tínhamos deixado, era a 'avó' dos meus filhos. Era a ela que recorríamos sempre que tínhamos problemas. E no exílio os problemas são muitos, até de sobrevivência. A mãe Stella, que além do mais era uma grande cozinheira, muitas vezes matou a fome à malta.» Mas como é que uma filha da burguesia, educada em colégio de freiras, se torna uma revolucionária, perseguida pela polícia política, presa e finalmente exilada?
«Enquanto eu for vivo, não sai nenhuma procissão à rua» , assim falava José Bernardo, o patriarca da família Sousa Correia, lavrador algarvio de pendor republicano e profundamente anticlerical. O facto é que só depois da sua morte os padres se atreveram a fazer desfilar um andor. Mas, na casa rural onde se centrava a vida da família, reinava um espírito de grande abertura. E, quando chegou a vez das netas, Maria Manuela e Maria Stella, o avô ateu fechou os olhos à educação religiosa.
Do pai médico, e mais tarde também advogado, Stella guarda fortes lembranças, não só da infância e adolescência, mas pelo papel que viria a desempenhar ao longo da sua vida de oposição ao regime (ele morre em 72 e, estando a filha no exílio, Marcello Caetano autoriza-a a vir ao funeral).
«O meu pai foi uma das pessoas que participaram no 5 de Outubro de 1910. Dei, há pouco, a pistola 'Sauvage' de que ele se serviu na revolução.»E o seu pai chegou a disparar? «Ah, sim. Disparou mesmo!» Aos cinco anos, aprende a ler e escrever em alemão. Além duma «Fräulein», uma professora portuguesa dá lições às duas irmãs. As meninas fazem a primeira instrução em casa. Depois, a «Fräulein» partiu e, para não perderem o que já sabiam, foram para a Escola Alemã. «Passados três anos, a minha mãe opôs-se. Disse que éramos portuguesas, devíamos ter uma educação em português.»
Entretanto, Stella e a irmã são internadas no Colégio das Doroteias, em Sintra, onde tiveram uma educação muito convencional e de cariz religioso. Ali fez as normais amizades de adolescentes, mas a maior parte delas acaba quando casa, aos 17 anos, com Inácio Fiadeiro. «Nesse tempo havia o costume de raparigas e rapazes telefonarem uns aos outros. Assim começou o namoro.» Depois de muitos telefonemas, Stella e Inácio quiseram conhecer-se pessoalmente. Marcaram encontro no Cinema Central, que então funcionava na «baixa». «Como não saíamos sozinhas, disse-lhe que iria com o meu avô e a minha irmã, expliquei como estaria vestida, que camarote ocuparíamos, etc.»
Inácio Fiadeiro, com 21 anos, estudante de Direito, era já conhecido da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE, antecessora da PIDE) pela sua militância política. Companheiro de Álvaro Cunhal, que será convidado para a boda, Fiadeiro, mais tarde, terá o seu escritório de advocacia lado a lado com o do pai do amigo, Avelino Cunhal.
«Casámos com toda a pompa, na Igreja do Campo Grande. Quatro damas de honor, vestido branco de longa cauda, grande copo-d'água... Depois fomos numa viagem de barco à Madeira.»
Passeio no Tejo: (1.ª fila, a contar da esquerda): Stella, Pilar Baptista Ribeiro, Soeiro Pereira Gomes; (2.ª fila): Inácio Fiadeiro, Ramos da Costa, Rui Grácio, Alves Redol e Maria Virgínia Com o casamento, Stella Bicker passa a chamar-se Stella Fiadeiro e a sua vida entrecruza-se com a de muitos militantes comunistas, numa época em que, segundo nos diz, «o PC estava muitíssimo desorganizado». Havia reuniões na casa dos Fiadeiro e, com os amigos, davam passeios de fragata pelo Tejo, onde discutiam a guerra civil espanhola, a política castradora de Salazar e cantavam «A Internacional».
Ao casar com Inácio, Stella começa a fazer parte dessa «geração que sabia que era uma geração». Em Álvaro Cunhal, Uma Biografia Política (I Volume), José Pacheco Pereira faz o retrato sociológico desses jovens, vindos de organizações de estudantes, de intelectuais, todos unidos pelo antifascismo, onde avulta «a figura muito magra, com ar de iluminado» de Cunhal, que vai tornar-se «o condutor».
Nessa época, a intimidade do casal Fiadeiro com Cunhal é de tal ordem que, ao nascer-lhes o primeiro filho, em 1938, o convidam para padrinho. A criança irá chamar-se António, numa homenagem a Francisco Paula de Oliveira (Pável), figura lendária dos primórdios do PCP, que usava o pseudónimo «António Bugio», e se encontrava preso e doente.
Nesses anos quentes a polícia política está particularmente activa. São inúmeras as prisões, com torturas - nalguns casos até à morte - e deportações para os Açores e o Tarrafal. A grande maioria dos companheiros «mergulha». Na prática, isso consiste em passar à clandestinidade Ao ser preso no início de 1938, Pável tenta incendiar o prédio onde vive, na Rua da Beneficência, a fim de ganhar tempo e destruir papéis comprometedores. Mais tarde conseguirá fugir da enfermaria da cadeia do Aljube, onde fora internado por a polícia temer que ele lhes morresse às mãos. Conta com a inesperada ajuda de um enfermeiro, Augusto Rodrigues, que em jovem fora comunista e agora era informador da PVDE mas se dizia decepcionado com os métodos utilizados pelos esbirros de Salazar. O enfermeiro dispõe-se a ajudá-lo na fuga, com a condição de o acompanhar na viagem para a URSS.
No plano de fuga e saída de Portugal, Stella participa activamente, com o marido e outros antifascistas. É ela uma das pessoas que está no carro estacionado nas traseiras do Aljube, esperando que Pável surja de uma clarabóia e desça pelas paredes do prédio. A sua missão é levá-lo para uma das casas da família, na Estrada de Benfica, onde preparara um esconderijo. Não teve medo de ser descoberta e presa? «Curiosamente, nunca tive medo físico. Penso que, naquela altura, trabalhávamos com tal amor, púnhamos tanto de nós nas coisas que fazíamos, que o medo, se existia, não dávamos por ele.» Pável acaba por fugir por outras vias mas aparece-lhe em casa de madrugada. Precisa de ajuda médica, pois ferira-se na fuga. «Ele estava em tal estado que não se lembrava sequer do nome da mãe», lembra Stella. Entretanto, Pável tenta chegar à URSS - onde se formara na Escola Leninista e tinha uma família, mulher e filho, a aguardá-lo - sem nunca o conseguir. Bloqueado no caminho, frustrado por não poder cumprir a palavra que dera ao enfermeiro Augusto de o levar consigo para a União Soviética, Pável acaba por rumar ao México. É de lá que, 40 anos depois, em Novembro de 1988, envia um poema a Stella.
Na Europa, é de novo a guerra. Após a derrocada dos republicanos de Espanha, começam a chegar a Portugal refugiados, sobreviventes de massacres, guerrilheiros escapados a pelotões de fuzilamento e, pouco depois, judeus fugidos à crescente ameaça nazi. Um grupo de mulheres antifascistas cria a Associação Feminina Portuguesa para a Paz, cuja missão era receber e ajudar os refugiados. O facto de Stella falar alemão foi providencial para os contactos, feitos maioritariamente com judeus da Alemanha. Com o desenrolar da guerra, a actividade da associação centra-se na ajuda aos prisioneiros e aos fugitivos dos nazis. «Enviávamos encomendas com roupa e comida para os campos de concentração. Não sei se chegaram aos destinatários, mas só uma delas nos foi devolvida, através da Cruz Vermelha. Suponho que a pessoa tivesse morrido.»
Em Lisboa, a associação pagava pensões para alojar refugiados, com ajuda de quotas e apoios de particulares. As «mulheres pela paz» estavam sob a mira da polícia secreta porque a paz, como se sabe, é sempre suspeita. «Não sabíamos bem como aquela polícia funcionava. Nunca fomos presas. Mas algumas de nós eram perseguidas, seguiam-lhes os passos.» O facto é que a PIDE encerra a Associação, numa fase em que esta era liderada por Maria Helena Pulido Valente. Stella passa a outra política de ajuda, uma organização feminina para apoio às famílias dos presos políticos portugueses.
Entretanto, acaba a guerra e acaba o casamento com Inácio Fiadeiro, destino natural de muitas das uniões sentimentais daquela geração que andava a abrir caminhos para o futuro. «Foi uma separação perfeitamente amigável, mas depois estive 40 anos sem lhe falar.» Stella ficou com os dois filhos - entretanto nascera Maria Antónia, por coincidência afilhada de Fernando Piteira Santos, que viria a ser o seu padrasto - e pela primeira vez na vida decide procurar emprego, «para não estar completamente dependente da ajuda dos pais».
O domínio do alemão é-lhe particularmente útil. Arranja colocação numa empresa alemã (ao todo, trabalhará em três firmas alemãs, a última das quais a Siemens) e recomeça a vida. Dois anos mais tarde, em 1948, casa com Fernando Piteira Santos. «Ele saiu da prisão dois meses antes. Como eu ajudava os presos políticos, estivemos sempre em contacto. Mas o nosso casamento nada teve a ver com os nossos divórcios.»
A vida do novo casal, Stella e Fernando Piteira Santos, foi sempre marcada por separações. «Como ele foi expulso do PCP em 52, deixou de contar com o apoio da rede clandestina do partido. Quando andava fugido da polícia, o que aconteceu durante anos, nunca nos víamos.» Com o telefone sob escuta, os passos seguidos, Stella rodeava-se de precauções. «Ele às vezes telefonava e dizia, 'Estás boa?', e eu desligava logo». Ficavam a saber que estavam ambos vivos e em liberdade, mas mais nada. «Aqueles primeiros anos de casamento foram de angústia. Havia normas rígidas de segurança. Quando o Fernando não estava preso e desaparecia, eu só podia procurá-lo dois dias depois.»
Fotos de Stella no arquivo da PIDE Certa vez, a separação foi muito longa. A jornalista Gina de Freitas, no seu livro A Força Ignorada das Companheiras, dedica um capítulo a Stella, que conta: «Quando foi da intentona de Beja, em que o meu marido tomou parte activa, a PIDE foi a nossa casa, onde ele felizmente já não estava porque se tinha ausentado na véspera. Durante nove meses não tivemos o mínimo contacto, pois ele estava na clandestinidade. De vez em quando recebia uma ou outra palavra, mas nunca o vi nem falei com ele. Tanto que durante um certo tempo nem sequer sabia se ele estava cá ou se já tinha saído de Portugal.»
O papel de Stella não foi meramente de espectadora da intentona de Beja. O general Humberto Delgado, que viera do exílio em Marrocos para «tomar o poder», desencontrara-se com o seu enviado e mentor do golpe, Manuel Serra, e não conseguia contactar os seus apoiantes - talvez por ser fim de ano, 31 de Dezembro de 1961. Chovia torrencialmente nessa noite e a PIDE farejava qualquer coisa «no ar». As portas de Lisboa estavam cercadas pela polícia. Quando Delgado já desesperava, o casal Piteira Santos disponibilizou-se para ajudá-lo a chegar a Beja. O plano incluía algumas mudanças de automóvel, como medida de precaução. Na primeira fase, Stella conduziu o general, até Porto Alto. Aí, Delgado mudou-se para o carro de Adolfo Ayala, seguindo para Beja, onde a cidade já se encontrava em pé de guerra. Na sequência do golpe, a PIDE desencadeia forte repressão sobre os mais conhecidos antifascistas. Para não ser de novo preso, Piteira Santos desaparece na sombra. Na caça aos clandestinos, a polícia secreta recorria a ciladas. Com Stella, são utilizados vários ardis, a ver se ela estabelece o fio de ligação ao marido, a viver algures, na mesma cidade, com outro nome e outras referências.
No dia 15 de Fevereiro de 1962, mês e meio após o «mergulho» de Piteira Santos, o telefone toca às 7h30 na casa de Stella. No melhor estilo conspirativo, uma voz feminina sussurra: «Não diga nada, oiça só o que vou dizer. O seu marido acaba de ser preso.» Stella desliga, sem falar. Sabe que é típico da PIDE atacar àquela hora, «a hora do padeiro», em que as pessoas estão estremunhadas e pouco preparadas para reagir adequadamente. Muitos antifascistas são presos ao acordar. Alguns têm a arma debaixo do travesseiro e nem se lembram de disparar. O telefonema pode ser apenas uma provocação, mas Stella também admite que possa tratar-se de uma informação verdadeira. Há que proceder com precaução. Faz três telefonemas. «Um para Mário Soares, porque tinha um almoço combinado com ele para esse dia, e outros para Lyon de Castro e João Sá da Costa, ambos editores e companheiros da luta antifascista. Todos são incomodados pela PIDE».
Nenhum desses fios conduz ao esconderijo de Piteira Santos, e a PIDE passa directamente ao ataque. Pouco depois, ao sair de casa acompanhada da filha, então com 18 anos e aluna da Faculdade de Letras, Stella é abordada por um pide, Abílio Pires. Na esquina, está estacionado um carro suspeito, cheio de agentes. Pires, que já a conhece das visitas às cadeias, diz-lhe: «Sra. D. Stella, faça o favor de me acompanhar, só para uns pequenos esclarecimentos.» Sabendo o que significava a detenção pela polícia política, Stella trata de pôr a salvo uma carta do marido, que tinha recebido por «correio secreto» e guardara na carteira, dentro de uma agenda. «Naquele momento o mais importante para mim era não deixar a carta cair nas mãos da PIDE.»
A filha, Maria Antónia Fiadeiro - jornalista que se distinguiu na defesa dos direitos das mulheres, hoje assessora principal do Ministério da Cultura - completa o relato: «Eu já estava na paragem de autocarro quando percebi que a minha mãe tinha sido abordada. Voltei para trás e disse ao pide que a queria acompanhar. Ele disse: 'A menina não complique as coisas, a sua mãe vem a casa almoçar.'». Mãe e filha tentam ganhar tempo. Stella diz-lhe que é dia de receber a pensão da Dona Leonilde (mãe de Piteira Santos, que vivia com o casal) e fazer alguns pagamentos, e despeja a carteira, com a preciosa agenda, dentro do saco escolar da filha. O pide Abílio intervém: «Isso é que não, quero a sua agenda.» Stella mete a mão no saco da filha, agarra a agenda, sacode-a para deixar cair a carta no interior, e guarda-na na mala. A carta estava a salvo. Stella, não.
Maria Antónia lembra-se de que nesse dia «foi como se de repente tivesse ficado adulta». A jovem tinha pela frente um exame de História Clássica; a mãe fora levada pela PIDE e não podia falar do assunto aos colegas; o padrinho, que amava como um pai, vivia escondido e não podia ser encontrado; em casa, sempre à espera de notícias, estava a Dona Leonilde, «a minha avó afectiva, com quem vivi desde os quatro anos», e a quem a verdade, por ser dura de mais, nunca podia ser contada por inteiro.
«Lembro-me dela receber postais do filho enviados de vários países, quando afinal ele estava em Portugal. Houve sempre a preocupação de protegê-la.»
Em Chrèa, na Argélia, num piquenique de exilados Stella, levada para a António Maria Cardoso, fica quatro dias de «estátua» (de pé, sem dormir nem se poder mexer). «No primeiro dia, recusei-me a comer, lembrando que me tinham garantido que iria almoçar a casa. Dizia-lhes: estou detida ou não? Só quando me informaram que estava oficialmente detida, voltei a comer, porque a partir daí não sabia quanto tempo estaria nas mãos deles.»
Entretanto, Maria Antónia contacta Mário Soares, para o informar da prisão da mãe e saber se, de facto, o padrasto fora preso. «O Mário Soares olha para mim muito sério e diz que só há uma pessoa que pode saber disso. Então, tomando as maiores precauções, mudando de táxi várias vezes, fui ter com essa pessoa. Toco à porta e não conheço quem me atende. Disse-lhe: 'Venho ter com o meu padrinho.' No interior da casa, ele ouviu a minha voz e mandou-me entrar.»
A primeira precaução foi tirar Piteira Santos daquele esconderijo e colocá-lo noutro lugar seguro. Nos dias seguintes, Maria Antónia insiste muito com os inspectores da PIDE para que a deixem falar com a mãe, incomunicável. «Os meus argumentos deviam parecer-lhes um bocado ingénuos, dizia-lhes que era muito nova para tomar conta da casa e de uma avó de 89 anos, que havia muito que fazer e eu não sabia como, precisava de orientação da minha mãe, etc.» O facto é que a deixaram ver a mãe, entretanto transferida para Caxias. «Dei-lhe um beijo na orelha, enquanto sussurrava 'o Fernando não foi preso'. Esta informação descansou-a.»
Seguiram-se mais 48 dias de reclusão para Stella. «Em Caxias, metem-me na cela onde estavam as presas do Comité Central do PCP, a Alda Nogueira, a Sofia Ferreira e a Cândida Ventura. Como a Cândida tinha sido mulher do Fernando, pensaram se calhar que nos íamos pegar as duas. E não. Demo-nos lindamente. A Cândida, que estava presa há muito tempo, sem notícias do exterior, queria saber tudo. Eu lá lhe ia dando as informações que tinha. Falávamos tanto, ao ponto da Alda Nogueira nos mandar calar, farta de nos ouvir.» Quase dois meses depois, Stella é libertada sob fiança, paga pelo pai, e proibida de sair do país. Entretanto, um pide visitou a Siemens, advertindo o chefe de pessoal que não deveria receber a funcionária de volta. «Mas ele foi impecável e, quando saí da prisão, tinha o meu emprego.» Stella ainda hoje não sabe por que é que a libertaram. O pai e os amigos influentes tinham exercido as pressões possíveis, mas a hipótese que lhe parece mais fiável é esta: «A PIDE deve ter pensado que, comigo em liberdade, conseguiria localizar o meu marido.»
Quando, após o 25 de Abril, Stella leu os ficheiros da polícia secreta, ficou admirada por ter sido seguida durante tanto tempo, sem dar por isso. «Verificavam todos os meus passos. Nunca pensei que fosse objecto de tal vigilância. Mas, como estava treinada para não deixar pistas, levava a minha vida normal e eles, através de mim, nunca chegariam ao Fernando.»
Como o cerco apertava, começou a congeminar maneiras de sair do país. Uma casual ida a Ayamonte deu-lhe a primeira ideia. Pediram-lhe a «autorização do marido» para passar a fronteira (uma lei humilhante, em vigor até 1969, proibia a saída de mulheres casadas sem permissão do marido). Foi um alerta. «Aprendi a imitar a assinatura do Fernando. Levei muitas horas a treinar, sem dizer nada a ninguém. Quando achei que estava bem, pedi ao meu pai para a reconhecer no notário. O notário reconheceu-a.» De três em três meses, Stella imitava a assinatura do marido e o pai levava-a ao notário. Nunca houve problemas no reconhecimento. Só o pai levantou a lebre: «Então tu dizes que não sabes do paradeiro do teu marido e ele assina os papéis?» Stella guardava o seu segredo.
Entretanto, o filho António, que vivia em Londres, anuncia-lhe o casamento e deseja a sua presença. Stella pede um passaporte, que foi recusado. Faz uma exposição ao ministro do Interior, em termos veementes, de mãe que não pode perder uma data tão marcante na vida do filho, e aguarda. O ministro procura informações no consulado de Portugal em Londres, onde lhe confirmam a entrada da documentação para o casamento, e mandou emitir o passaporte. «A minha ida a Londres poderia ter sido a saída para o exílio, mas não foi...» Combinara com a filha que esta lhe enviaria postais em nome de Stella Piteira Santos, caso o marido ainda estivesse no país, e de Stella Correia Ribeiro, se ele já tivesse saído. A Londres, três semanas depois, os postais continuavam a chegar em nome de Stella Piteira Santos. «Então voltei a Portugal e voltei a ser funcionária da Siemens.» O facto de ter saído de Portugal, e voltado, teria dado certa confiança à PIDE, do género «ela foi e voltou, cumpriu a sua palavra». Mas o plano de fuga estava em marcha.
Stella e Fernando Piteira Santos num desfile das comemorações do 25 de Abril «Havia uma mulher que era, e ainda é, tida como antifascista - não digo o nome porque a senhora está viva mas, se ler isto, saberá que é a ela que me refiro - que de repente se fez muito minha amiga. Começou a enviar-me bolos para Caxias - onde me puseram de sobreaviso quanto a ela - e, no dia em que fui libertada, veio cumprimentar-me.» Esta «amizade» inclui alguns almoços em casa da senhora, um passeio a Sintra, a disponibilização de uma casa de campo «se Stella quisesse encontrar-se com o marido», e outros mimos.
Num dos almoços, Stella, por vários sinais de nervosismo da dona da casa, desconfia que há alguém à escuta. Ela fá-la levantar-se da cadeira onde estava e sentar-se noutra, de costas para o terraço; quando Stella tenta correr as cortinas da casa de banho, que davam directamente para esse espaço, a dona da casa fica muito aflita e impede-a de o fazer, com uma desculpa esfarrapada; finalmente, a provocação vai ao ponto de, muito alto, na cozinha que dava acesso ao exterior, perguntar-lhe directamente: «Então, quando é que vai ter com o seu marido?» Com a calma possível, Stella comenta: «Eu?! Ir ter com o meu marido? Então a senhora acha que, com uma filha de 18 anos, uma sogra idosa, e o meu ordenado a fazer falta para elas viverem, eu iria ter com o meu marido? Nem pense nisso!» Depois, Stella convida-a para almoçar em sua casa, daí a duas semanas. «Penso que isto a tranquilizou, quanto à minha possível fuga.»
A confirmar que a «antifascista» - o «camaleão», na gíria, ou elemento infiltrado - tinha ligações à PIDE, Stella conta que, no passeio a Sintra, e desconfiada de que a «amiga» queria localizar uma casa que os Piteira Santos tinham em Venda Seca, a levou lá. «Mostrei-lhe a casa, disse-lhe que ali passávamos fins-de-semana, etc. Claro que só lá estava o caseiro.» A senhora insiste: «Mas esta casa não tem número, a rua não tem nome, como é que se chega aqui?» Stella explicou-lhe: basta passar o fontanário, contar as ruas, virar em tal parte, e é o terceiro portão. Simplesmente, enganou-a. O portão não era o terceiro, mas o quarto. E, numa madrugada, os pides irrompem pela «terceiro portão», arrancam da cama duas velhotas espantadas, e viram tudo do avesso. Só depois se apercebem do engano. Stella obtém assim a confirmação de que a «amiga» é informadora da PIDE. «Denunciei-a a duas pessoas, que não acreditaram. Portanto, não voltei a mencionar o nome dela.»
Está em andamento o plano de fuga. «Quando a convidei para almoçar em minha casa, queria apenas dar-lhe confiança e ganhar tempo. Já tinha tudo preparado para sair. Fui levando cestos de fruta, que vinham da quinta do Algarve, para casa da minha mãe. Os cestos só levavam fruta por cima e, por baixo, as minhas coisas.»
Antes de tentar passar a fronteira, Stella deixou dois postais. Um, para a «amiga», pedindo-lhe desculpa por não a poder receber em casa no dia previsto, porque tinha ido a Londres tratar-se de uma doença grave (um atestado médico, passado por um amigo, confirmava-o); outro, para a Siemens, a avisar que se ausentaria por tempo indeterminado. «Como devia passar a fronteira no Sábado, dei os postais à minha filha, pedindo-lhe para só os pôr no correio na Segunda-feira.»
Stella finalmente dirige-se à fronteira do Caia, rumo ao exílio, em Setembro de 1962, num carro-caravana do casal Lyon de Castro. «Eles habitualmente iam para férias naquela altura, não levantando suspeitas.» Na fronteira, Lyon de Castro deixa as duas mulheres no carro e leva os três passaportes à polícia, incluindo a autorização de Piteira Santos para Stella sair do país. «Passou mais de meia hora. Eu cravei as unhas nas mãos até fazer sangue.» Como tudo parecia estar em ordem, deixaram-nos seguir.
«Lyon de Castro levou-me até à fronteira francesa, aí apanhei o comboio para Paris. Estive dois meses em França sem que o meu marido, que estava em Marrocos, soubesse. Eu não queria que ele soubesse, com receio de que me pedisse para voltar atrás, para não deixar a filha e a mãe sozinhas. Mas eu tinha decidido que queria viver com ele o resto da minha vida.»
Apoiada por outros exilados, a estada de Stella em França foi «mais bem guardada que muitos segredos de Estado». Piteira Santos, que todas as semanas telefonava para os camaradas de Paris, só soube que a mulher se encontrava lá quando desembarcou no aeroporto. Ficou zangado? «Um pouco. Foi difícil, a princípio, muito difícil...» Stella e Fernando estiveram em Paris alguns meses, durante a organização da Frente Patriótica de Libertação Nacional, e depois seguiram para Argel, onde lhes tinham sido oferecidas condições de permanência e continuação do trabalho político. «Ficámos até ao 25 de Abril.»
Manuel Alegre, que os acompanhou neste percurso, conta que uma das frustrações foi ter-lhes sido pedido para não entrarem em Portugal antes de 2 de Maio de 1974, para evitar confrontações com outras forças políticas durante a manifestação do Dia do Trabalhador. Maria Antónia Fiadeiro, que fora a Espanha buscá-los, com bilhetes de avião, regressa sozinha, e triste.
Stella, que viera de comboio, também só entra em Portugal no dia seguinte à manifestação. O casal Piteira Santos finalmente vive em liberdade no seu próprio país. Até 92, ano em que morre o marido, participam ambos em inúmeras actividades políticas. Depois, Stella continua sozinha o seu percurso. «Não recuso nenhum convite para falar do fascismo e do que ele fez aos portugueses.» Afinal, ela sabe bem do que está falando.
Texto de ÂNGELA CAIRES