Enquanto alguém vai para o trabalho de bicicleta em Amesterdão, um coro ensaia na Estónia e um barco pesca em Malta. Turistas esperam para entrar num museu de Florença. Turcos vendem kebab em Edimburgo. Estudantes de Frankfurt passam o seu Erasmus em Istambul, esforçando-se por dominar dois ou mesmo três idiomas. Pode comprar-se leite de rena na Lapónia ou houmous em Creta usando sempre a mesma moeda; melhor ainda, pode ir-se de um lugar ao outro sem mostrar o passaporte.
Quem diria? Para muitos, este é o retrato de um continente em decadência. Na verdade, todas as cidades e regiões atrás citadas (à excepção de Istambul, que não está na UE mas cujo país já participa no programa Erasmus de troca de estudantes) fazem parte da mais interessante experiência política dos nossos tempos. São quase 500 milhões de humanos (só a China e a Índia têm mais população) numa extensão maior do que a de muitos impérios da história. Mas não é um império, é outra coisa, não se sabe bem o quê. Para muitos, deveria ser uma federação. Na verdade, pouco importa o que lhe chamemos. Eu sou um europeísta não por qualquer ufanismo europeu (na verdade estou mais próximo de um cabo-verdiano do que de um letão, e isso agrada-me) mas porque olhando para a União vejo que ela tem sido uma força de paz, liberdade e até alguma solidariedade. Com os seus muitos defeitos, a União está na primeira linha do Tribunal Penal Internacional, do Protocolo de Quioto, da cooperação e desenvolvimento. Nada disto é perfeito, mas pelo menos tenta-se.
Mas também sou um europeísta porque a União tem um grande futuro. Conheço bem, há muitos anos, as queixas dos europessimistas. Acho-as pouco convincentes. Que a União está velha (temos os velhos mais saudáveis e potencialmente mais produtivos do mundo). Que há muitos muçulmanos (que medo!, qualquer dia são quase três por cento). Que há poucos bebés (mas até os portugueses têm três meses de licença de parto paga, ao contrário dos norte-americanos). Que há imigrantes a mais (mas afinal não havia falta de gente em idade activa?). Que não faz parte da revolução tecnológica (só se inventou a Web, e em tempos mais recentes o Skype). Que está para trás na globalização (mas Londres, uma cidade da União, ultrapassou recentemente Nova Iorque como capital financeira do planeta). Enfim, que as regulamentações europeias são absurdas (mas graças a elas todo o mundo compra brinquedos mais seguros ou electrodomésticos menos poluentes).
Do lado europeísta, uma das coisas que mais se censuram à Europa é ela não ter exército nem hard power (assim em inglês "americano"). Isso não me preocupa. O "poder brando" é mais eficaz: os países que querem entrar sabem que têm de respeitar mínimos de democracia e direitos humanos. A União não exporta democracia à bomba, importa democracia com democracia. A questão que temos de resolver agora é: como manter a democracia dentro da União. A União não é uma utopia; é um compromisso. Mas deve ser, acima de tudo, um compromisso com a democracia. Ela é o nosso motor e o nosso horizonte; na falta de um cimento nacional ou linguístico, é a democracia que nos segura. É por isso que é difícil, exasperante até, ser europeísta com líderes europeus que têm medo da democracia.
Esquecem-se que irresponsável não é quem exige mais democracia, é quem foge a ela. Por mim, não me forcem a escolher entre os meus instintos europeístas e os meus instintos democráticos. Nesse caso, terei de preferir mais democracia com menos Europa a mais Europa com menos democracia.
Artigo de Rui Tavares no Público de 2 de Julho. Foi publicado parcialmente - e o "parcialmente" tem aqui mais do que um sentido - no Esquerda Republicana. O Ricardo Alves parece estar mesmo convencido de que a escolha é entre democracia ou europatriotismo. Não é essa a minha opinião, nem a do Rui Tavares.
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