Três dias depois da entrega do mais importante troféu do calendário desportivo nacional - que soterrou em prestígio e glória o seu justíssimo vencedor - e numa altura em que a botija de oxigénio do CAA já foi certamente reparada por um profissional, e o Bruno já mudou de operador de telemóvel*, será de bom tom prestar aqui um pequeno tributo ao conceito de narrativa no futebol, um princípio metafísico que tem regulado a actividade desde os primeiros pontapés de saída e que é parcialmente responsável pela sanidade mental daqueles que, como eu, atravessaram a puberdade atrelados à instituição psicologicamente menos recomendável da história da modalidade.
(Convém igualmente recordar os animadores das workshops anuais de reverberação saudosista que costumam entrar em funcionamento sempre que há jogos ao Domingo à tarde ("ah, o futebol em família") que a parafernália nostálgica a que aludem (o farnel, a almofada desdobrável, o transístor do papá) teve e tem o seu reflexo negro (o psiquiatra, o lenço de papel, a embalagem de Lexotam) naqueles para quem um jogo do seu clube, mais do que qualquer impulso recreativo, sempre representou um sólido motivo para ponderar a eutanásia. Fim de parênteses.)
A destreza no desenredamento da narrativa tem sido o mais fiável mecanismo de sobrevivência do adepto palmaresisticamente desafiado, mas o seu potencial oracular está acessível a todos. Reduzido ao essencial, o conceito pode ser formulado da seguinte maneira: «Em futebol, qualquer detalhe que contribua para um melhor arco dramático, vai geralmente ocorrer». Apoiado neste princípio, qualquer observador atento podia prever, por exemplo, que, depois do fiasco metabólico na final do Mundial de '98, a grande figura do Mundial de '02 seria Ronaldo; ou que, por mais apagada que fosse a sua época, era inevitável que Derlei marcasse um golo decisivo ao Benfica.
A partir do momento em que o Futebol Clube do Porto espoliou o Vitória Futebol Clube da hipótese de conquistar dois troféus na mesma época, dois factos tornaram-se instantaneamente evidentes: o Sporting iria ganhar a final, e a grande figura do jogo seria um avançado brasileiro destinado a acabar a carreira no Alpalhoense.
(Convém igualmente recordar os animadores das workshops anuais de reverberação saudosista que costumam entrar em funcionamento sempre que há jogos ao Domingo à tarde ("ah, o futebol em família") que a parafernália nostálgica a que aludem (o farnel, a almofada desdobrável, o transístor do papá) teve e tem o seu reflexo negro (o psiquiatra, o lenço de papel, a embalagem de Lexotam) naqueles para quem um jogo do seu clube, mais do que qualquer impulso recreativo, sempre representou um sólido motivo para ponderar a eutanásia. Fim de parênteses.)
A destreza no desenredamento da narrativa tem sido o mais fiável mecanismo de sobrevivência do adepto palmaresisticamente desafiado, mas o seu potencial oracular está acessível a todos. Reduzido ao essencial, o conceito pode ser formulado da seguinte maneira: «Em futebol, qualquer detalhe que contribua para um melhor arco dramático, vai geralmente ocorrer». Apoiado neste princípio, qualquer observador atento podia prever, por exemplo, que, depois do fiasco metabólico na final do Mundial de '98, a grande figura do Mundial de '02 seria Ronaldo; ou que, por mais apagada que fosse a sua época, era inevitável que Derlei marcasse um golo decisivo ao Benfica.
A partir do momento em que o Futebol Clube do Porto espoliou o Vitória Futebol Clube da hipótese de conquistar dois troféus na mesma época, dois factos tornaram-se instantaneamente evidentes: o Sporting iria ganhar a final, e a grande figura do jogo seria um avançado brasileiro destinado a acabar a carreira no Alpalhoense.
Havia ainda, contudo, muito trabalho pela frente. Perder, na mesma temporada, um terceiro jogo para o Sporting sem recorrer à falta de comparência ou à utilização de Stepanov implica uma operação só ao alcance da melhor organização desportiva nacional dos últimos 25 anos.
Apostando na quase sempre fiável táctica da inferioridade numérica, Jesualdo utilizou de início João Paulo e Mariano (este último, mostrando mais uma vez não se ter adaptado ao espírito do balneário, teve o descaramento de jogar relativamente bem); Lisandro foi submetido a uma semana de visionamento intensivo de cassetes de Nuno Gomes para tentar assimilar o conceito de que a bola não tem de ir sempre para dentro da baliza; Paulo Assunção, alimentado por nutricionistas americanos desde Abril, foi impedido de correr os habituais duzentos quilómetros por partida; e a criatura sobre-humana que é Lucho González recebeu a missão mais árdua de todas: com instruções rigorosas para imitar um jogador mediano, foi encarregue de proporcionar a Miguel Veloso a clareira de segurança de 15 metros quadrados necessária para que os trinta e sete olheiros ingleses na bancada pudessem escrevinhar furiosos elogios nos seus caderninhos.
O resto foi deixado aos pés de Tiuí, que encarnou com inusitada competência o princípio de que a mediocridade é um dos mais frequentes motores da História, fechando a narrativa com um lance que não conseguirá repetir até ao final da sua carreira, em 2019, nos distritais de Portalegre.
Duas notas finais para os dois heróis mudos do fim-de-semana: Grimi provou mais uma vez que é o homem certo no clube certo, e que merece o dinheiro que se pede por ele. Apesar da constante hemorragia de bolas para os adversários (os seus cruzamentos pareciam ter um pré-acordo com o champô de Bruno Alves), Grimi é o exemplo clássico do defesa cuja primeira prioridade não é o seu posicionamento táctico, mas sim a estrutura anatómica do oponente. É por causa dos antepassados de Leandro Grimi que os maqueiros são hoje uma classe profissional remunerada, mas é indiscutível que todos os clubes precisam de um lateral assim, particularmente se contam na faixa oposta com Abel, um jogador incapaz de aleijar alguém voluntariamente - todas as faltas que comete são acidentais - e cuja capacidade para intimidar está limitada aos seus companheiros de equipa e a mim próprio, que atravesso a rua sempre que o vejo na televisão.
O outro foi Derlei, que monitorizou todo o processo de celebração, guiando os caloiros nas intrincadas movimentações (é assim que se grita, é assim que se ergue os braços) necessárias para festejar um título. Espero que renove até 2012, e que o Tiuí seja emprestado ao Vizela. Para "rodar", para "rodar".
(* Não acho bem que se ande por aí a "raiar o insulto". Se o Bruno me enviar o seu número de telemóvel, comprometo-me a fazer um trabalho sério. Tenho bastante tempo livre, e o meu plano TMN inclui 250 SMSs gratuitos por mês: julgo reunir as condições necessárias para me aproximar mais do insulto do que os seus displicentes amigos.)
No comments:
Post a Comment