Wednesday, August 10, 2005

A carta que escrevi a mim mesmo (há 40 anos)

Num outro Agosto, há exactamente 40 anos, publiquei no Diário de Lisboa este poema...



ANTEVISÃO

Ponho-me a pensar
na recordação que perdurará desta tarde
quando o momento-agora
se precipitar no abismo guloso
que é o futuro

É uma tarde vulgar
com conversas banais
com a criada a passar a ferro
num canto do quarto
com a miudagem a gritar lá fora no quintal
brincadeiras que eu já não entendo
com alguém a chamar da varanda
um chamamento sem resposta
que desiste
e entra batendo a porta atrás de si.

Nisto tudo só o vento destoa
como se fosse lá fora um grande búzio
gritando e gemendo simultâneamente
num vendaval
que eu sei que não existe.

Daqui a muito tempo terei eu talvez
perdido este espanto-sempre
que colho como uma flor de vez em quando
e alinho em versos rabiscados.

Estarei talvez um homem de meia idade
obeso e careca
com a carne flácida e sem frescura
já na curva descendente
que acaba sempre no mesmo sítio.

Talvez toda a minha angustia de agora
que não tem razão (pelo menos aparente)
se transforme nessa altura
numa raiva surda
pela mocidade que já não volta
por esse estranho sabor
de ter o corpo todo em flor
cantando hinos ao sol e ao mar
que so sente na juventude
e eu me tome alguém sádico
e vulgar
e estranhamente convencido de mim
e só de mim
e tenha um riso velho
e goste só de chispe e cozidos
e dobrada e aguardente.

Talvez até me ria
ao saber que alguém tem a mania de escrever versos.

Talvez até me ria
e diga piadas
e faça força cá dentro
para sepultar as recordações
de tardes como esta.

E se acaso algum dia estiver só
e sentir a minha vida escoando-se vazia
talvez procure numa velha mala
estas páginas com versos rabiscados
e consiga num momento de abstracção e sonho
ouvir o vento desta tarde banal.

Fernando Penim Redondo
Diário de Lisboa, 27/8/1965

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