Thursday, October 6, 2005

Ouvindo os silêncios

_______________________________________________ 2002 - FPR



Ouvindo os silêncios
por Miguel Poiares Maduro

E se desta vez eu não escrevesse nada? O que quereria dizer o meu silêncio? O que é que quis dizer não dizendo nada? Ou será que simplesmente não tinha para dizer? Será que o silêncio é, como diz um personagem de Shakespeare em Tanto Barulho por Nada, a única forma de realmente exprimir a felicidade pois pequena seria a nossa felicidade se a pudéssemos descrever em palavras? Ou será que o silêncio, como defendeu George Steiner ao falar do holocausto, é antes a única forma de exprimir o que é tão terrível que não é susceptível de ser revelado através das palavras? Não podiam ser mais diferentes estas duas leituras do silêncio e, no entanto, partilham algo: a noção de que o silêncio é o único recurso que temos quando as palavras já não chegam.

Na verdade, o silêncio pode ter mais sentidos que todas as palavras. Pode ser uma forma de acção ou um instrumento de reflexão. Pode servir para esconder um segredo ou revelar um estado de alma. Pode ser uma forma de cumplicidade mas também pode ser o único instrumento de resistência. Pode ser sinal de ignorância ou, ao contrário, ser o reflexo da curiosidade. Pode ser uma forma de distanciamento como pode, igualmente, ser uma forma de comunicação.
Seja em que sentido for o silêncio é a única linguagem que apenas a nós pertence. Mas é um instrumento para nos refugiarmos em nós mesmos ou uma forma de dizermos algo aos outros? E o silêncio deve servir para pensar ou para sentir? É o silêncio o caminho para escutar o que pensamos ou será que, como diria o Caeiro de Fernando Pessoa, o silêncio deve ser antes utilizado para procurar sentir sem pensar pois pensar é não compreender um mundo que apenas foi feito para se sentir?

Não falarás!

Tenho uma certeza: existe hoje um crescente desconforto com o silêncio (quantas pessoas não vão pelas escadas para evitar os silêncios do elevador…). Não é que exista menos silêncio, existe é um outro uso do silêncio. O silêncio pode ser sinal de intimidade (sentir-se confortáveis a partilhar um momento de silêncio) mas, mais frequentemente, é hoje sinal de indiferença ou mesmo de quase intolerância. Hoje, quando não se fala não é porque se quer estar em silêncio mas porque não se tem nada para dizer ou, pior ainda, se teme o que se possa vir a dizer. Sempre me impressionou o número de casais, em restaurantes e outros locais públicos, que passam horas sem falar um com o outro Não creio que estejam a desfrutar do silêncio… Aliás, acho que escolhem locais bem ruidosos para terem a certeza de que o barulho dos outros os deixa, sim, desfrutar do silêncio do outro! (o que é algo bem diferente de desfrutar do silêncio). O que pretendem é libertar-se da "obrigação" de comunicar. Saem não para estar juntos mas para evitar terem de se suportar ou descobrir que não têm nada para conversar. Há imensos casais para quem as vidas sociais intensas são na realidade uma forma de escaparem ou do outro. Nestes casos, estar em silêncio é apenas um estratagema para evitarem ficar a saber que apenas teriam coisas inconvenientes a dizer… Estes casais não estão em silêncio. Estão é a procurar fugir do seu silêncio.

Seja como for, hoje não convivemos bem com o silêncio. Há sempre uma música de fundo onde quer que estejamos. Até nas igrejas, local onde o culto se associava tantas vezes ao silêncio, é hoje frequente entrarmos e ouvirmos em fundo música sacra, como se as pessoas temessem ficar a sós com Deus. Parecemos obcecados em preencher o silêncio como se o silêncio não contivesse vida e, desta forma, um momento de silêncio fosse um momento perdido. Quando nos falam de uma vida intensamente vivida nunca pensamos numa vida vivida em silêncio.

Talvez isto esteja associado ao que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de "vida liquida", a vida moderna feita de constantes mudanças, a um ritmo alucinante, dirigida pela procura de tudo experimentar e consumir que se traduz em permanentes novos começos. Só que, o outro lado desta vida, como nota Bauman, são os constantes e dolorosos fins, a insatisfação permanente e uma vida permeada pelo receio da incerteza. Talvez seja também por isto que há tanta gente que acaba afinal por se refugiar no mais absoluto silêncio. Cada vez sei de mais casos de pessoas que abandonam tudo por uma vida de isolamento e meditação. O silêncio é neste caso uma outra opção de vida. Parece que a única alternativa a uma vida sem silêncio é uma vida em silêncio.

Compondo com o silêncio
Para mim o silêncio não é uma forma de vida, nem sequer uma pausa na vida. É antes uma pausa que muda a vida. Recentemente vi um documentário sobre Abbado intitulado "Ouvindo o silêncio". Nele, o maestro italiano realçava a importância do silêncio no contexto de uma música: para Abbado, o silêncio não serve apenas para assinalar o fim de uma frase musical e o início de outra mas é antes parte da música alterando a nossa percepção do que estava antes e condicionando o que vem a seguir. Com a vida é o mesmo.

A arte é aliás paradigmática de como se pode utilizar o silêncio para condicionar a vida. Basta notar em como no cinema o silêncio é o melhor instrumento de tensão. No cinema, tempo narrativo e tempo real raramente coincidem. Num contexto em que anos passam em poucos minutos, um instante de silêncio é realmente uma eternidade. Perturba o espectador, suscita-lhe dúvidas e ansiedade, antecipa o desconhecido e, quando nada se segue, deixa apenas uma enorme tensão por resolver. Gerir o silêncio é uma arte. O silêncio pode ser mesmo o melhor instrumento da narração.

Na literatura, também há silêncio.
Pausa
Ele reforça a importância de uma frase.
Pausa.
É uma pista deixada ao leitor.
Pausa

O silêncio também pode ser entendido como um alerta para ouvir outros sons da vida. O compositor John Cage escreveu uma música denominada 4 33' que é apenas… silêncio. Mas o objectivo de Cage não é impor-nos o silêncio mas provar que o silêncio não existe e que há sempre alguns sons que escutamos. Só que, como ele próprio referia, os sons do silêncio têm tanto de real como de imaginário. É por isso que, por vezes, o silêncio também nos engana. Quantas vezes não associamos o silêncio de alguém a uma personalidade observadora e inteligente ("saber estar calado") para depois descobrirmos que afinal o mistério não tinha nada de misterioso: era apenas alguém sem nada de interessante para dizer. Quantas falsas reputações não foram adquiridas através do silêncio? Como notava Eça, em Portugal, há muitos génios que passam a vida em silêncio: "Toda a gente diz que é um génio". "Mas já ouviste ou leste alguma coisa dele?". "Não, mas toda a gente sabe que é um génio. É um génio tão grande e tão insatisfeito que prefere, não escrever nada". Há silêncios que merecem ser criticados ou, pelo menos, ignorados.

Eu não sou do tipo silencioso mas aprecio o silêncio. Tudo depende do silêncio. Há coisas que se apreciam melhor em silêncio mas há outras perante as quais não devemos ficar calados. Há momentos para trocar palavras e há outros para viver em silêncio. Neste instante, quero oferecer-lhe um pouco de silêncio…

Ouvindo os silêncios
por Miguel Poiares Maduro

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