Estas últimas semanas temo-nos repetido tanto: as mesmas personagens, as mesmas histórias, os mesmos dramas. E porque nos repetimos? Descobrimos que queremos viver o mesmo outra vez, imaginamos de forma diferente a vida que vivemos ou queremos viver o mesmo mas de forma diferente? Às vezes há momentos na vida em que parece que nos falta a inspiração para algo diferente. Portugal, por ex., vive um desses momentos. Sentimo-nos prisioneiros da memória em vez de nos inspirarmos nela.
Nos últimos anos da sua vida o poeta irlandês Yeats sentiu-se sem inspiração. Foi na memória que a reencontrou. No poema Circus Animal´s Desertion começa por notar como a falta de inspiração o leva a confrontar-se com a sua vida:
Procurei um tema e procurei em vão
Procurei diariamente, seis semanas ou algo assim
Talvez, agora, sendo apenas um homem desgastado
Tenha de estar satisfeito com o meu coração,
Embora Inverno e Verão até à velhice se tenham iniciado
Os meus animais de circo estavam todos em exposição
(…) Que posso fazer senão enumerar velhos temas
Só que Yeats compõe a partir destes velhos temas um retrato original da sua vida. Não sei é se Yeats está a revisitar a sua vida ou a basear-se nela para construir uma nova. É por isso que o regresso de que fala no fim também aparece como um novo princípio:
Aquelas imagens de mestre porque completas
Cresceram numa mente pura, mas de onde vieram?
Um monte de lixo, o varrer das valetas
Velhas chaleiras, velhas garrafas, e as latas que se partiram,
Velhas pedras, velhos ossos, velhos trapos, a velha
Que mantém a contabilidade
Agora que a minha escada se foi
Tenho de me deitar onde todas as escadas principiam
No ferro velho do coração
Yeats não se repetiu. Inspirou-se na memória. Numa altura em que assistimos a tantas repetições talvez seja bom lembrar que a memória não tem que ser sinal de repetição mas de um novo conhecimento. A memória é o que transporta o passado até ao presente. Ao fazê-lo, no entanto, deixa espaço à interpretação. Esta é moldada pelo tempo e a dúvida é saber se o tempo apura a memória ou, ao contrário, a engana.
Parece que o nosso cérebro organiza dois tipos diferentes de memória: a memória de curto prazo (ligada ao aspectos sensoriais: som, olhar, cheiro, tacto) e uma memória de longo prazo. Qual estará mais próxima da verdade? Será que conhecemos verdadeiramente alguém ou alguma coisa quando estamos na sua presença ou quando damos tempo à nossa memória para seleccionar o que essa pessoa ou facto têm realmente de importante. Será que a distância temporal nos torna mais objectivos ou, simplesmente, mais selectivos?
Tendemos a ver a memória como o registo da nossa vida. Mas a memória não é um processo de gravação mas sim de edição. É que a memória é finita e, logo, temos de seleccionar o que merece fazer parte dessa memória. Editamos o nosso passado para construir a nossa memória das coisas e das pessoas. Por vezes, exacerbamos o que elas tiveram de negativo, outras vezes exaltamos o que tiveram de positivo. Só que não sabemos se devemos acreditar na nossa nova história ou na história que nos lembra a memória da nossa memória. Há até quem mude de memória consoante muda de história. É nossa, no entanto, a responsabilidade do que cabe na nossa memória. É por isso que não se podem justificar certas falhas de memória com os limites da memória: "- Esqueceste-te do nosso aniversário!" "Desculpa querida mas já não tinha memória disponível…".
A verdade é que uma boa memória não é uma grande memória (que se lembra de muita coisa) mas sim uma memória crítica. Mais relevante que a informação que nos transmite a memória é a curiosidade que ela pode promover. Nada tem mais memória ou informação que um computador mas não diremos que um computador é culto ou faz bom uso da memória. O conhecimento não se esgota na memória. Ao contrário, a memória deve ser um incentivo ao conhecimento. Mais do que como uma base de dados devemos conceber a memória como um instrumento de juízo crítico e fonte de inspiração. A razão não nos permite controlar a memória mas permite-nos discutir com ela. Emoção e razão de novo juntas… Como diz Kaufman (o argumentista de um filme chave sobre a memória: The Eternal Sunshine of the Spotless Mind): "A história é sobre emoções e sobre a memória e ambas estão no cérebro. Se a centrasse no coração seria apenas sobre bombear sangue".
É por isso que não concebo memória mais importante que a memória emocional. Neste caso, o que conta não é tanto se a memória reproduz uma verdade histórica mas sim a inspiração que pode resultar dessa memória. É assim com a memória da mulher que se ama: não é visual mas emocional. A emoção que me transmite a sua memória revela-me a sua beleza mas não me permite descrevê-la. Será esta memória verdadeira? Pouco importa, o que é importante é que ela mereça essa memória. Há memórias assim, em que o que nos fica gravado é a emoção que algo nos provocou. Só que a memória também nos provoca novas emoções: a tristeza é a memória dos maus momentos; a melancolia é a forma como a memória se recorda dos momentos felizes.
Hoje, no entanto, as pessoas parecem menos preocupadas com a sua memória do que com a memória com que os outros ficam delas. Os diários e as autobiografias têm, frequentemente, pouco de memória e muito de tentativa de implantação de uma certa memória nos outros. E o que será pior: ser uma má memória ou não fazer parte da sua memória?
Também se diz que há pessoas sem memória: é o caso dos chefes que nos despedem ou das mulheres que nos deixam! Claro que a razão, frequentemente, é outra: é que elas não partilham das nossas memórias…
Hoje em dia, até a memória parece ser a prazo. Recentemente, ouvi na rádio que a qualidades das novas formas de impressão das fotografias digitais é muito superior a anterior mas que apenas durarão 100 anos. Aparentemente isto é comum a outros meios de gravação actuais. Já pensaram bem: daqui a 100 anos não existirá memória de nós. É verdade que há muitas coisas que se passam hoje das quais, provavelmente, preferíamos que não restasse memória, mas o que me preocupa não é tanto preservar a nossa memória mas assegurar o futuro dos outros: é que sem memória podem bem vir a repetir os nossos erros. Um povo que não faz bom uso da memória fica preso à sua História. Pensando bem, temo que hoje já seja comum repetirmo-nos sem memória. Portugal parece estar sempre a repetir o mesmo filme com actores diferentes. Falamos tanto da nossa memória colectiva mas parece que não aprendemos nada com ela. O problema da memória colectiva é que se já é difícil aprender com a nossa memória (quantas vezes repetimos os mesmos erros) ainda é mais difícil aprender com a memória dos outros (de pouco serve conhecermos os seus erros). Daí que sejamos herdeiros de uma História mas não tenhamos memória.
Será que alguém se lembra de quando perdemos a memória?
Vivemos sempre duas vezes?
por Miguel Poiares Maduro
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