Saturday, June 19, 2010

Ensaio sobre a memória (para Saramago)

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De repente as pessoas começaram a perder a memória. Levantavam-se de manhã e não sabiam quem eram. A memória do eu desvanecia-se em poucos instantes, como aqueles sonhos que sonhamos e se esvaiem por entre os dedos mal nos levantamos.
O jogador de polo aquático de "Palombella rossa" perdera a memória depois de um acidente. Mas as pessoas que agora descobriam uma existência sem identidade não marchavam, imaculadas e atónitas, por entre os clubismos dos outros. Os clubismos tornam-se impossíveis quando ninguém sabe quem verdadeiramente é.
Ninguém sabia qual o seu clube, nem o seu partido, nem a sua condição social, nem a sua família. De um momento para o outro também tinham desaparecido antigas embirrações, melindres e ódios.
Ninguém ousava a violência por não saber se quem a sofreria não era afinal o seu amigo ou o seu irmão. 
Ninguém acusava ou incensava os outros por não saber que pecados próprios, ou heroísmos, carregava consigo sem saber.
Não havia remorsos nem vaidades.
Cada um tinha que conviver com a sua natureza mais profunda finalmente liberta das camadas que a etiqueta social lhe sobrepusera, numa espécie de nudismo do espírito.

Os dias eram feitos de interrogações sobre o porquê de se estar ali e todos partilhavam as deduções, pois só em comum tinham a possibilidade de inventar um significado para as suas vidas.
Durante algumas semanas ainda havia os que tentavam resistir ao sono para preservar, por mais algum tempo, as descobertas de cada dia. Acabavam sempre por adormecer e esquecer.
Até que todos se convenceram de que não restava aos homens senão redescobrir-se e redescobrir os outros, renascidos sem rótulos, todos os dias da sua vida.
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