Gosto muito de David Cronenberg. Sempre gostei, mais até do que seria razoável gostar de qualquer canadiano (atravesso um problema semelhante com algumas bandas recentes). E todos aqueles que, como eu, encontram pacatas epifanias em metáforas toxicológicas, já devem ter reparado no seguinte: Cronenberg é um canadiano que, artisticamente falando, não se mete nas drogas. O que nunca impediu alguns dos seus filmes mais antigos de serem descritos como "alucinatórios", como se o homem andasse por aí a impingir ácido às crianças
Quando o abdómen de James Wood se transforma numa vulva para ler VHS, ou a máquina de escrever de Peter Weller começa a mexer as antenas e a falar, não estamos no meio do deserto com os xamãs de Oliver Stone, nem sequer no domínio lúdico do "surreal" (outro termo crítico tão escorregadio que é impossível agarrá-lo sem expor o derrière aos sodomitas semânticos), mas sim numa espécie de realidade intensificada. Nas mãos de outro realizador, essas cenas seriam fragmentos etéreos, observados ao ralenti, através de uma névoa de mescalina. Cronenberg arregaça as pálpebras e salpica tudo com diluente. Se há uma analogia tóxica a utilizar, esta não envolve drops ou cogumelos, mas sim o processo de desintoxicação. A imaginação visual de Cronenberg sempre foi a do ex-alcoólico: aquele que não toca numa gota há anos, e cujos sentidos assimilam tudo com a clareza suja da privação. Isto, pelo menos, é a maneira como as coisas se me afiguram nesta quadra festiva.
Eastern Promises, apesar do meticuloso esforço de Vincent Cassell para estragar todas as cenas em que entra, é um grande filme. Aquele fotograma, que encontrei por pura sorte num site francês, é da minha sequência preferida, a primeira visita da enfermeira ao restaurante. É um momentozinho de nada, antes das tatuagens à Caravaggio, da gorjeta iconográfica, do wrestling na sauna: a caminho da cozinha, o personagem de Mueller-Stahl faz uma pausa para corrigir o ensaio musical das duas crianças, e Naomi Watts fica ali especada no enquadramento, à vontade uns trinta segundos, alheada da cena, sem sequer representar.
Naomi Watts a fazer de figurante enquanto um mafioso careca de avental toca violino: isto sim, é cinema. Ou, pelo menos, é a maneira como as coisas se me afiguram nesta quadra festiva.
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