O melhor livro do ano - no sentido restrito em que me tem divertido bastante esta semana - apresenta-se com este pavoroso título: The New Kings of Nonfiction. (Seria menos mau se viesse a lançar um novo modelo para baptizar antologias: The Proud Presidents of Pansy Poetry, The Shit Sheriffs of the Short-Story, etc). Custa 14 euros e meio, e pode ser adquirido na Almedina, um facto, por si só, quase miraculoso. A política de preços do plantel Almedinense é notoriamente esotérica, e as esporádicas pérolas que se vão encontrando naquelas prateleiras costumam estar incluídas em duas categorias muito específicas: o "Se-Quiser-A-Gente-Paga-lhe-Para-Levar-Isto" (já lá vi um livro da Routledge mais barato do que um pacote de farelos), ou o "Declare-Aqui-A-Sua-Bancarrota" (como é o caso do The Penguin Guide to Blues Recordings, disponível na Amazon por menos de 15 libras, mas cuja etiqueta lusa anunciava uma quantia menos parecida com o preço de um livro do que com o Produto Interno Bruto do Canadá. Adiante).
O livrinho em questão, organizado por Ira Glass, recolhe algumas peças de reportagem literária publicadas na última década nas melhores revistas do mundo, que são, como se sabe, quase todas americanas. Alguns dos nomes são conhecidos (David Foster Wallace, Malcolm Gladwell, Susan Orlean, Bill Bufford), outros nem por isso, mas a qualidade é uniforme.
A jóia da coroa é provavelmente o longo artigo de Michael Lewis para o New York Times sobre Jonathan Lebed. Quem é Jonathan Lebed? - pergunta o leitor, visivelmente desanimado. Lebed era, em 1999, um jovem de 14 anos. E, na idade em que muitos de nós passávamos as tardes a telefonar para a Vera Roquete, Lebed digeria quatro horas diárias de Canal Bloomberg. E achou tudo aquilo muito interessante. Munido apenas de um e-mail da AOL, uma conta-poupança aberta pelos pais, e uma insólita estrutura de apoio (já lá vamos), quase levou o sistema capitalista a um colapso nervoso.
Em cinco meses lucrou cerca de oitocentos mil dólares, colocou em causa os fundamentos do mercado de capitais e levou às fronteiras da apoplexia vários membros da SEC (Securities and Exchange Commission, entidade reguladora destas coisas nos Estados Unidos). Lebed foi acusado de influenciar artificialmente o preço das acções de inúmeras companhias, mas o caso acabou por nunca ir a tribunal, em parte porque a SEC se apercebeu que seria complicado provar que o que Lebed fazia era ilegal sem fazer ruir todo o edifício pelos alicerces.
Não excluo aqui um certo grau de manipulação jornalística, mas é divertidíssimo comparar o tom e o conteúdo das declarações das duas partes interessadas. O presidente da SEC soa como Lebed deveria soar, isto é: como um miúdo de 14 anos. As suas explicações sobre o sucedido são vagas, circulares e um bocadinho patéticas ("He's a bad kid", "he'd buy, lie and sell high", "because I say so", e afins). O cerne cómico da peça ocorre quando um advogado é trazido à sala para explicar ao jornalista o que significa "manipular o mercado", diálogo que gera uma definição intrigantemente circular, em que promover uma companhia com o intuito de elevar a sua cotação é "artificial" quando a SEC consegue convencer um tribunal dessa "artificialidade". O conceito de "força de mercado" é igualmente nebuloso, embora a conclusão do jornalista me pareça à prova de água: quando a internet colidiu com Jonathan Lebed, Jonathan Lebed transformou-se numa força de mercado. Ou então todo o sistema é uma farsa.
Os melhores parágrafos da peça, contudo, são os dedicados à voz do rapaz, que rapidamente denunciam uma oleada (e potencialmente oleosa) máquina de fazer sentido. Isto é o próprio, na primeira pessoa - e volto a relembrar que a primeira pessoa em questão tinha nesta altura mais borbulhas do que anos de calendário:
«I was going over some old press releases about different companies. The best performing stock in 1999 on the Nasdaq was Qualcomm (QCOM). QCOM was up around 2000% for the year. On December 29th of last year, even after QCOM's run from 25 to 500, Paine Webber analyst Walter Piecky came out and issued a buy rating on QCOM with a target price of 1,000. QCOM finished the day up 156 to 662. There was nothing fundamentally that would make QCOM worth 1,000. There is no way that a company with sales under $4 billion, should be worth hundreds of billions. . . . QCOM has now fallen from 800 to under 300. It is no longer the hot play with all of the attention. Many people were able to successfully time QCOM and make a lot of money. The ones who had bad timing on QCOM, lost a lot of money.
People who trade stocks, trade based on what they feel will move and they can trade for profit. Nobody makes investment decisions based on reading financial filings. Whether a company is making millions or losing millions, it has no impact on the price of the stock. Whether it is analysts, brokers, advisors, Internet traders, or the companies, everybody is manipulating the market. If it wasn't for everybody manipulating the market, there wouldn't be a stock market at all. . . .''
Melhor ainda é a resposta às acusações de que certos e-mails seus postados publicamente num fórum da Yahoo, e contendo elogios a companhias das quais ele próprio era accionista, teriam "manipulado artificialmente o mercado":
«Every morning I watch Shop at Home, a show on cable television that sells such products as baseball cards, coins and electronics. Don West, the host of the show, always says things like, 'This is one of the best deals in the history of Shop at Home! This is a no-brainer folks! This is absolutely unbelievable, congratulations to everybody who got in on this! Folks, you got to get in on the line, this is a gift, I just can't believe this!' There is absolutely nothing wrong with him making quotes such as those. As long as he isn't lying about the condition of a baseball card or lying about how large a television is, he isn't committing any kind of a crime. The same thing applies to people who discuss stocks.»
* * *
Quantos membros da minha geração, nas suas gincanas sociais historicamente circunscritas entre recordes de pontos no Golden Axe, colossais arquitecturas de legos, obsessões semi-privadas com as sobrancelhas da Helena Ramos e discussões sobre os méritos relativos de Use Your Illusion vol. 1 versus Use Your Illusion vol. 2, quantos membros da geração de 80, dizia, tiveram percursos adolescentes merecedores de quinze mil palavras no New York Times?
O factor mais intrigante no artigo é um que obriga a reformular esta questão: quantos de nós tivémos um amigo como Jonathan Lebed? Pessoalmente, nunca tive um amigo como Jonathan Lebed; se o tivesse tido, isso não teria feito diferença nenhuma, pois ainda hoje não sou capaz de identificar uma boa dica de investimento, mesmo que ela caia no meu quintal ao lado do marmeleiro. Mas Jonathan Lebed tinha amigos como Jonathan Lebed, e isso fez toda a diferença do mundo.
Para perceber o que o tornou possível, e sem injectar um mililitro de determinismo na história, é importante notar que ele não representou uma mera explosão de talento num vácuo suburbano. Os pioneiros, seja em que área for, podem perfeitamente estilhaçar paradigmas no escuro, mas dá sempre jeito ter uma câmara de eco para testar o equipamento. Quando comecei a ler o artigo julguei (erradamente) que iria encontrar um protagonista familiar e rapidamente identificável: o idiot savant, com um cérebro colossal mas cheio de cavidades autistas, brilhante mas incapaz de atar os próprios sapatos, a babar-se num quarto escuro por cima de um teclado (ou de um tubo de ensaio, ou de um tabuleiro de xadrês, enfim. . .) e a reescrever a realidade às apalpadelas. Mas tornou-se gradualmente aparente que o protagonista da história não é tanto Jonathan Lebed como o Liceu de Cedar Grove em New Jersey, onde, num curto período de tempo entre 1999 e 2001, aproximadamente um terço da população estudantil (e alguns docentes que apanharam o comboio em movimento) passava as horas vagas a comprar e vender companhias:
«[Jonathan's] crowd of friends at Cedar Grove High School, most of whom owned pieces of Internet businesses and all of whom speculated in the stock market. ''There are three groups of kids in our school,'' one of them explained to me. ''There's the jocks, there's the druggies and there's us -- the more business oriented. The jocks and the druggies respect what we do. At first, a lot of the kids are, like, What are you doing? But once kids see money, they get excited.'' (. . .)»
A estrutura social de um liceu não é apenas uma estrutura de integração ou exclusão - pode ser também uma estrutura de capacitação, e servir para aglutinar intuições afortunadamente semelhantes, numa idade formativa. É por isso que os parâmetros que medem a qualidade de um estabelecimento de ensino são sempre reducionistas se se limitarem à qualidade dos recursos óbvios e tangíveis. Aqueles são os anos em que gravitamos na direcção de personalidades e interesses que espelhem e moldem os nossos, e em que começamos a construir pela base as redes sociais que nos vão sustentar na vida adulta. Uma boa escola, idealmente, não permite apenas o acesso a um bom professor e a uma boa biblioteca; deve permitir também o acesso a um bom recreio. Se não o encontramos - ou se temos o azar de estudar num liceu como o dos Morangos com Açúcar, onde as categorias disponíveis são "betos" e "motards" (isto era de uma série anterior, mas the point stands, em Cascais ou na Marmeleira) as perspectivas são reduzidas. Não eliminadas, como provam todos os génios socialmente equilibrados que nasceram e cresceram no Bronx ou no Prior Velho (eu conheço um), mas drasticamente reduzidas.
Os amigos de Jonathan Lebed não duplicaram o seu rasgo, mas compreenderam-no, e souberam gerir as consequências. Um dos cavalos de batalha da SEC tinha sido a noção de que a irresponsabilidade de Lebed causara males reais, com "vítimas" de carne e osso, algo que ressoa na cabeça do jornalista algumas páginas depois, quando descobre que Keith (16 anos, um dos amigos mais próximos de Jonathan) perdera dinheiro numa companhia chamada West Coast Video, depois de Jonathan ter saído da jogada: ''You're Jonathan's victim.'' A resposta é epigramática: ''Nah,'' Keith said. ''In the stock market, you go in knowing you can lose. We were just doing what Jon was doing, but not doing as good a job at it.''
Façam um favor a vocês próprios e comprem o livro: não há uma única página aborrecida. Sempre a pensar em vocês, tomei a liberdade de esconder os três exemplares que ficaram na Almedina debaixo do Penguin Guide to Blues Recordings.
Se é que aprendi alguma coisa esta semana sobre como "manipular artificialmente o mercado", aposto que ainda ninguém lhes mexeu.
(Jonathan Lebed, hoje um milionário de 22 anos, tem uma página online com dicas de investimento. Não é tão divertido como ir ver as pilecas a Newmarket, mas quem quiser pode espreitá-la aqui.)
Os melhores parágrafos da peça, contudo, são os dedicados à voz do rapaz, que rapidamente denunciam uma oleada (e potencialmente oleosa) máquina de fazer sentido. Isto é o próprio, na primeira pessoa - e volto a relembrar que a primeira pessoa em questão tinha nesta altura mais borbulhas do que anos de calendário:
«I was going over some old press releases about different companies. The best performing stock in 1999 on the Nasdaq was Qualcomm (QCOM). QCOM was up around 2000% for the year. On December 29th of last year, even after QCOM's run from 25 to 500, Paine Webber analyst Walter Piecky came out and issued a buy rating on QCOM with a target price of 1,000. QCOM finished the day up 156 to 662. There was nothing fundamentally that would make QCOM worth 1,000. There is no way that a company with sales under $4 billion, should be worth hundreds of billions. . . . QCOM has now fallen from 800 to under 300. It is no longer the hot play with all of the attention. Many people were able to successfully time QCOM and make a lot of money. The ones who had bad timing on QCOM, lost a lot of money.
People who trade stocks, trade based on what they feel will move and they can trade for profit. Nobody makes investment decisions based on reading financial filings. Whether a company is making millions or losing millions, it has no impact on the price of the stock. Whether it is analysts, brokers, advisors, Internet traders, or the companies, everybody is manipulating the market. If it wasn't for everybody manipulating the market, there wouldn't be a stock market at all. . . .''
Melhor ainda é a resposta às acusações de que certos e-mails seus postados publicamente num fórum da Yahoo, e contendo elogios a companhias das quais ele próprio era accionista, teriam "manipulado artificialmente o mercado":
«Every morning I watch Shop at Home, a show on cable television that sells such products as baseball cards, coins and electronics. Don West, the host of the show, always says things like, 'This is one of the best deals in the history of Shop at Home! This is a no-brainer folks! This is absolutely unbelievable, congratulations to everybody who got in on this! Folks, you got to get in on the line, this is a gift, I just can't believe this!' There is absolutely nothing wrong with him making quotes such as those. As long as he isn't lying about the condition of a baseball card or lying about how large a television is, he isn't committing any kind of a crime. The same thing applies to people who discuss stocks.»
* * *
Quantos membros da minha geração, nas suas gincanas sociais historicamente circunscritas entre recordes de pontos no Golden Axe, colossais arquitecturas de legos, obsessões semi-privadas com as sobrancelhas da Helena Ramos e discussões sobre os méritos relativos de Use Your Illusion vol. 1 versus Use Your Illusion vol. 2, quantos membros da geração de 80, dizia, tiveram percursos adolescentes merecedores de quinze mil palavras no New York Times?
O factor mais intrigante no artigo é um que obriga a reformular esta questão: quantos de nós tivémos um amigo como Jonathan Lebed? Pessoalmente, nunca tive um amigo como Jonathan Lebed; se o tivesse tido, isso não teria feito diferença nenhuma, pois ainda hoje não sou capaz de identificar uma boa dica de investimento, mesmo que ela caia no meu quintal ao lado do marmeleiro. Mas Jonathan Lebed tinha amigos como Jonathan Lebed, e isso fez toda a diferença do mundo.
Para perceber o que o tornou possível, e sem injectar um mililitro de determinismo na história, é importante notar que ele não representou uma mera explosão de talento num vácuo suburbano. Os pioneiros, seja em que área for, podem perfeitamente estilhaçar paradigmas no escuro, mas dá sempre jeito ter uma câmara de eco para testar o equipamento. Quando comecei a ler o artigo julguei (erradamente) que iria encontrar um protagonista familiar e rapidamente identificável: o idiot savant, com um cérebro colossal mas cheio de cavidades autistas, brilhante mas incapaz de atar os próprios sapatos, a babar-se num quarto escuro por cima de um teclado (ou de um tubo de ensaio, ou de um tabuleiro de xadrês, enfim. . .) e a reescrever a realidade às apalpadelas. Mas tornou-se gradualmente aparente que o protagonista da história não é tanto Jonathan Lebed como o Liceu de Cedar Grove em New Jersey, onde, num curto período de tempo entre 1999 e 2001, aproximadamente um terço da população estudantil (e alguns docentes que apanharam o comboio em movimento) passava as horas vagas a comprar e vender companhias:
«[Jonathan's] crowd of friends at Cedar Grove High School, most of whom owned pieces of Internet businesses and all of whom speculated in the stock market. ''There are three groups of kids in our school,'' one of them explained to me. ''There's the jocks, there's the druggies and there's us -- the more business oriented. The jocks and the druggies respect what we do. At first, a lot of the kids are, like, What are you doing? But once kids see money, they get excited.'' (. . .)»
A estrutura social de um liceu não é apenas uma estrutura de integração ou exclusão - pode ser também uma estrutura de capacitação, e servir para aglutinar intuições afortunadamente semelhantes, numa idade formativa. É por isso que os parâmetros que medem a qualidade de um estabelecimento de ensino são sempre reducionistas se se limitarem à qualidade dos recursos óbvios e tangíveis. Aqueles são os anos em que gravitamos na direcção de personalidades e interesses que espelhem e moldem os nossos, e em que começamos a construir pela base as redes sociais que nos vão sustentar na vida adulta. Uma boa escola, idealmente, não permite apenas o acesso a um bom professor e a uma boa biblioteca; deve permitir também o acesso a um bom recreio. Se não o encontramos - ou se temos o azar de estudar num liceu como o dos Morangos com Açúcar, onde as categorias disponíveis são "betos" e "motards" (isto era de uma série anterior, mas the point stands, em Cascais ou na Marmeleira) as perspectivas são reduzidas. Não eliminadas, como provam todos os génios socialmente equilibrados que nasceram e cresceram no Bronx ou no Prior Velho (eu conheço um), mas drasticamente reduzidas.
Os amigos de Jonathan Lebed não duplicaram o seu rasgo, mas compreenderam-no, e souberam gerir as consequências. Um dos cavalos de batalha da SEC tinha sido a noção de que a irresponsabilidade de Lebed causara males reais, com "vítimas" de carne e osso, algo que ressoa na cabeça do jornalista algumas páginas depois, quando descobre que Keith (16 anos, um dos amigos mais próximos de Jonathan) perdera dinheiro numa companhia chamada West Coast Video, depois de Jonathan ter saído da jogada: ''You're Jonathan's victim.'' A resposta é epigramática: ''Nah,'' Keith said. ''In the stock market, you go in knowing you can lose. We were just doing what Jon was doing, but not doing as good a job at it.''
Façam um favor a vocês próprios e comprem o livro: não há uma única página aborrecida. Sempre a pensar em vocês, tomei a liberdade de esconder os três exemplares que ficaram na Almedina debaixo do Penguin Guide to Blues Recordings.
Se é que aprendi alguma coisa esta semana sobre como "manipular artificialmente o mercado", aposto que ainda ninguém lhes mexeu.
(Jonathan Lebed, hoje um milionário de 22 anos, tem uma página online com dicas de investimento. Não é tão divertido como ir ver as pilecas a Newmarket, mas quem quiser pode espreitá-la aqui.)
(Adenda: O Filipe Guerra leu um post qualquer noutra galáxia e, por motivos não aparentes, linkou este. Ou então leu mesmo este, mas em braille defeituoso, ou numa tradução do babelfish.
Também é preciso ter em conta que tropeçar nas palavras "América" e "dinheiro" assim, logo de manhã, é suficiente para estragar o resto do dia a qualquer pessoa de bem.)
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