Circula uma petição na rede a pedir à Câmara Municipal de Lisboa a edificação de um memorial às vítimas do massacre judaico de 1506. Pessoalmente apoio essa edificação (ou, mais genericamente, de um memorial às vítimas da Inquisição, que inclui os judeus), tal como defendo a edificação de um outro memorial que ninguém defende ou para o qual não se fazem petições: às vítimas da colonização portuguesa, em particular da escravatura. Não pretendo com estes memoriais fazer acertos de contas com a História, nem acho que de forma nenhuma Portugal se deva envergonhar do seu passado. Mas hoje deve recordar-se de alguns crimes trágicos (a inquisição e a escravatura à cabeça), e admitir que os cometeu. Esses memoriais servem para manter essa memória sempre viva.
Dito isto (e espero que tenha ficado bem claro), parece-me interessante averiguar a forma como episódios como o de 1506 em Lisboa são vistos, ainda nos dias de hoje, por quem certamente estaria na linha da frente da defesa da construção do memorial agora em questão. Um exemplo elucidativo é o de George Steiner, ensaísta, filho de judeus vienenses exilados nos EUA para escapar ao nazismo e ao Holocausto. Na recente conferência “A Ciência Terá Limites?”, realizada no final de Outubro na Fundação Calouste Gulbenkian, Steiner afirmou que “uma civilização que mata os seus judeus não recupera”. Eu sou o primeiro a defender que uma civilização que expulsa os seus judeus fica muitíssimo mais pobre (já nem falo em matá-los). Se os mata, então, comete um crime hediondo. Agora… não recupera? Não recupera porquê? Será alguma cabala? E será só com os judeus? Se matar os muçulmanos, os cristãos, os negros, os ciganos, os gays, já recupera? E se essa civilização, depois de matar os judeus, construir um memorial, já pode recuperar ou ainda não chega?
Esta extraordinária afirmação de George Steiner foi proferida na mesma semana em que se discutia a “teoria empírica” de James Watson, de que os negros são menos inteligentes que os brancos, baseada na observação dos seus empregados. Ninguém ficou indiferente às declarações de Watson: pessoas houve que, a meu ver bem, as condenaram como racistas e não-científicas; outras houve que (com alguns argumentos que reconheço serem válidos) defenderam a liberdade de expressão do cientista. Mas ninguém ousou sequer criticar esta afirmação (igualmente racista) de Steiner. Porquê?
Houve uma polémica esta semana no blogue da revista Atlântico, e no seu centro estava André Azevedo Alves. Tal como há uns meses houve outra grande polémica no Blasfémias, e no seu centro estavam os textos de Pedro Arroja. Do que conheço não vejo grande diferença entre as ideias de Azevedo Alves ou de Arroja (vejo uma grande diferença no estilo, e apesar de tudo prefiro de longe o deste último). Relativamente a Azevedo Alves as posições (particularmente na direita blogosférica) dividiram-se, mas os textos de Arroja foram condenados unanimemente. (Um bom exemplo desta dualidade de critérios é mesmo o director da Revista Atlântico.) Porquê?
Nem toda a direita procedeu assim, no entanto: Carlos Abreu Amorim, no Blasfémias, distanciou-se tanto dos textos de Azevedo Alves como dos de Arroja. Deveremos portanto gabar a coerência do truculento blasfemo? Não esperem por isso. Ainda esta semana foi votado um empréstimo bancário na Câmara Municipal de Lisboa, que foi prontamente condenado no blogue onde Abreu Amorim escreve. E alguém duvida de que este ultraliberal (e “mata-mouros” ainda por cima) é contra tamanho empréstimo, preferindo antes dispensar pessoal, cortar despesas e privatizar? Pois, e voltando onde este já longo texto começou, este mesmo autor usou o seu espaço de opinião no “Correio da Manhã” para exigir a uma câmara sobreendividada que construa um memorial aos judeus assassinados em Lisboa em 1506, insurgindo-se contra o adiamento desta proposta (não se falou em recusa da proposta, mas sim em adiamento)! Independentemente do empréstimo, o memorial seria mais importante que as dívidas da câmara! Mais uma vez, porquê?
A chave para a resposta a todos estes “porquês” está, creio, na afirmação de Steiner. De todos aqueles a quem apontei incoerências, estou certo de que nenhum condenaria essa afirmação. Eu considero-a racista e condeno-a, como já referi. Sou a favor da humildade e do reconhecimento dos nossos erros; por isso sou favorável à construção dos memoriais que referi, haja dinheiro para isso. O que eu não posso aceitar – é frontalmente contra os meus princípios, causando-me reacções viscerais – é que alguém se considere naturalmente melhor do que os outros, sem nunca ter de o demonstrar.
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