Sunday, October 25, 2009

Flaming globes of Sigmund


Sempre gostei muito daquelas histórias - apócrifas ou não - de súbitas revelações nocturnas, em que uma pessoa se levanta a meio da noite depois de um espasmo de criatividade, anota tudo num papel e descobre horas mais tarde que a criatividade não sobreviveu à transferência de suporte. Hitchcock a sonhar uma ideia brilhante para um filme, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com a frase "boy meets girl"; Bolaño a sonhar um romance maior do que o Ulysses, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com o 2666; ou o caso ainda mais trágico de Carlos Azenha, a sonhar uma longa e respeitada carreira profissional no futebol europeu, a escrever a sinopse de olhos fechados, e a acordar para descobrir apenas um papelinho garatujado com o plantel do Vitória de Setúbal.
Estas histórias têm pathos, porque condensam numa narrativa limpinha um dos grandes mistérios humanos: as calamidades que podem acontecer à inspiração e às aspirações naquela fracção de segundos em que são transmitidas do córtex para o mundo.
Sempre gostei muito destas histórias, mas nunca tinha participado - até que há três noites atrás me levantei a meio da noite com uma solução para o problema do défice orçamental. Quando acordei de manhã, absolutamente convencido de que iria ganhar o próximo Nobel da Economia, encontrei apenas uma folha A5 ao lado da caminha com a seguinte frase: «O défice está no Brasil - é preciso fumá-lo».
Bem, o défice está no Brasil; e é preciso fumá-lo. Suponho que isto, como a Bíblia, não é para ser interpretado literalmente, até porque uma simples análise logística permite-nos verificar as dificuldades operacionais envolvidas: mesmo que o défice fosse efectivamente localizado no Brasil, seria complicadíssimo isolar as suas propriedades tangíveis de forma a conseguir emboscá-lo com mortalha e filtro. (Na verdade, uma segunda camada de complexidade é lançada sobre o versículo pelo duplo sentido do verbo fumar, que poderia até levar ao surgimento de uma corrente herética que pretendesse não aspirar o fumo resultante da combustão do défice, mas sim desidratar o défice num fumeiro, o que em princípio levaria à sua preservação, etc, etc, e é bom de ver que temos logo aqui um problema maior do que o Pelagianismo).
Tudo isto foi com certeza provocado pelo livro que li na noite anterior - Liar's Poker, de Michael Lewis - especificamente, uma passagem em que ele compara a assimilação do jargão financeiro à aprendizagem de uma língua estrangeira: primeiro faltam-nos as palavras para determinados conceitos, depois começam-nos a surgir palavras para conceitos que não sabíamos possuir, e finalmente acabamos a sonhar com derivativos japoneses. O livro é muito bom e proporcionou-me muita diversão mesmo antes de a palavra "blackjack" na página 125 me ter provocado o equivalente literário a uma ejaculação precoce. A história de Howie Rubin, o trader que perdeu 250 milhões à Merril Lynch em 1987, e que começou a carreira a contar cartas em Las Vegas, vale, só por si, o preço do livro (que não faço ideia qual seja; uma ignorância apropriada, até porque no mundo do livro ninguém sabe o preço de nada).
O elemento espectacular é este: Howie Rubin tornou-se bond trader porque aquilo lhe fazia lembrar o blackjack (o único jogo de casino em que eventos passados influenciam eventos futuros), mas chegou à conclusão de que a vida em Las Vegas era uma coisa muito mais digna e racional. A sua revelação, codificada implicitamente no axioma de que é mais arbitrário trocar obrigações hipotecárias do que jogar blackjack, é que o dinheiro é mais estúpido do que um baralho de cartas. Rubin ainda anda ali às voltas a tentar convencer-se de que o facto de eventos passados não influenciarem eventos futuros no mercado das obrigações hipotecárias está relacionado com o comportamento errático dos homeowners americanos, mas não engana ninguém. Os homeowners americanos e as pilhas de 312 cartas bem baralhadas podem ser volúveis, mas são um modelo de estabilidade comparados com o dinheiro. O fio condutor de Liar's Poker é este: o dinheiro é completamente maluco. Não se pode confiar nele. Num momento pode estar ali ao canto, tranquilo, ocupado a ser muito, e no momento seguinte pode estar deitado numa viela, a vomitar na sarjeta, sem se lembrar quem é nem onde mora. Bom, este blogue acaba aqui. Obrigado a todos por terem vindo, foram três anos extraordinários, mas agora a minha vida é isto:

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