Aqui está um verbo que bem podia ter nascido nos anos oitenta do século XX.
A leitura dos livros da Zita Seabra e do Raimundo Narciso desencadeou em mim uma série de memórias dos “anos Gorbatchev” que sumariamente caracterizei em texto anterior, o primeiro desta série.
Como disse então gostaria de vir a compreender, e não apenas descrever, a sucessão de factos e de transformações que levou tantos milhares à dissidência, activa ou passiva.
Em minha opinião as dissidências só podem surgir quando desaparece um elevado grau de confiança nos líderes. Enquanto isso não acontece os militantes como que se dispensam de pensar, tão convencidos estão de que alguém o faz, melhor, por eles.
No meu caso, que julgo ser similar a muitos outros, o “25 de Novembro” foi o primeiro momento que abriu a porta à dúvida sobre dirigentes até aí considerados quase infalíveis. O curso dos acontecimentos, claramente mal previstos e mal geridos, legitimava a pergunta: “devo confiar cegamente nos dirigentes partidários quando está em causa o futuro do país, a eventualidade de uma guerra civil e, no limite, a minha própria sobrevivência ?”.
Deixemos para outra ocasião Novembro de 1975, assim como todas as coisas mal explicadas que então aconteceram, e voltemos a meados dos anos oitenta quando surgiram Gorbatchev e Cavaco, provocando novas quebras de confiança que redundaram nas dissidências do PCP.
Eu já militava no PCP há 20 anos e, sendo embora amigo de muitos dissidentes “notáveis”, tinha feito um percurso muito diferente. Continuava na célula da minha empresa, o maior potentado nas tecnologias da informação, longe portanto do “sector intelectual” onde as dissidências tiveram quase sempre a sua génese ou o seu principal eco.
Fui sucessivamente eleito, de 1981 a 1993, para a Comissão de Trabalhadores e também, de 1989 a 1993, para a Direcção do CESL, Sindicato do Comércio e Serviços de Lisboa. Paralelamente pertenci ao organismo intermédio do PCP responsável pelos militantes do comércio e serviços da cidade de Lisboa e orientei o grupo de células das empresas multinacionais de informática.
Apesar desses cargos, que desempenhei em paralelo com a actividade profissional, penso que continuei sempre a ser, no essencial, um militante da célula de empresa.
Como qualquer militante “dedicado” fiz de tudo um pouco; passei muitas noites a vigiar as sedes do partido, quando as ameaças de bomba ainda eram para levar a sério, colei muitos cartazes e vendi centenas de entradas para a Festa do Avante. Gastei parte das minhas férias em campanhas eleitorais e até escrevi artigos para jornal oficioso “O Diário”.
Por vezes interrogo-me acerca do efeito que teve sobre a minha evolução política a coexistência da militância no PCP com a minha actividade profissional como consultor num sector tecnológico de ponta. Aconteceu-me, com frequência, reunir com a administração de uma grande empresa industrial durante o dia e partir para uma colagem de cartazes do PCP, contra a exploração, à noite. Ou então chegar de um curso avançado de gestão em Bruxelas e engrenar, de martelo em punho, nas construções da festa do Avante. Há nisto, sem dúvida, algo de esquizofrénico.
Conheci a classe operária de um ponto de vista profissional pois era especialista em aplicações informáticas para a indústria. Isso obrigou-me a estudar in loco o modo de funcionamento de inúmeras fábricas e a contactar não com a classe operária do mito mas com aquela que realmente produz, nas fábricas concretas dos verdadeiros capitalistas.
Parece-me inquestionável que fiquei marcado pela actividade política e sindical num microcosmo empresarial, a minha empresa, onde apenas uma pequeníssima minoria perfilhava as minhas ideias e onde o salário médio era várias vezes múltiplo do salário médio nacional. Liderar reivindicações em tal contexto ensina a evitar o primarismo das mensagens, a nunca desrespeitar o sentimento colectivo sob pena de destituição e a concluir que se pode sempre reivindicar mesmo quando não se está, do ponto de vista económico, no “grau zero” da sociedade.
Tratando-se de uma empresa de tecnologia também se aprendia a importância do desenvolvimento tecnológico para a economia e para a sociedade. Mas acontecia, à medida que os anos iam passando, que havia um fosso cada vez maior entre as experiências profissionais e sindicais, na empresa, e o estilo de trabalho de um “colectivo” tão peculiar como era o PCP. Coisas tão comezinhas como a projecção de transparências para suporte do discurso ou o pagamento das quotas por transferência bancária, por exemplo, eram impensáveis no partido nessa época.
Os funcionários destacados para controlar a nossa célula tinham cada vez menos capacidade, ou paciência, para lidar com as nossas questões que para eles, sem dúvida, soavam a “chinesices de quem ganhava um balúrdio”. Era frequente convidarem “camaradas mais responsáveis” para virem, com a sua aura, pôr um pouco de água nossa fervura. A partir de certa altura tive a sensação de sermos polidamente tolerados.
A profissão obrigava-nos a múltiplas viagens pela Europa. No plano sindical da empresa, através da “IWIS - IBM Workers International Solidarity”, acabei por contactar com modos mais espontâneos de funcionar como nos sindicatos dos EUA, da Coreia, e do Japão ou mais calculistas, como no caso dos alemães dos franceses ou dos italianos, por exemplo. As reuniões da IWIS em Paris (1989) e Estugarda (1992) ajudaram-me a relativizar os “tabus” que ainda nos condicionavam localmente.
Também fui tomando contacto cada vez mais imediato com os “países de leste”.
A minha estreia ocorrera em 1979 na Hungria e depois em 1980, quando as nuvens ainda não toldavam o horizonte, em Moscovo, no Cazaquistão e na Sibéria.
Meses depois da ascensão de Gorbatchev, em 1985, percorri de automóvel durante um mês, e em campismo com os meus filhos, a RDA, a Checoslováquia e a Hungria.
No ano seguinte, 1986, aproveitando uma viagem profissional a Berlim, usei a estação de metro em Friedrichstrasse como porta de passagem para Berlim Leste e, em 1987, fiz parte de uma delegação sindical numa visita de estudo do desenvolvimento informático da Bulgária.
Finalmente, mas não menos importante, visitei a parte ocidental da URSS (Leninegrado, Kiev e Moscovo) no Verão de 1988, em plena abertura política lançada por Gorbatchev e com as ruas cheias de discussões e manifestações.
Este conjunto de viagens permitiria, só por si, um longo texto que não cabe neste concreto discorrer.
Em síntese pode dizer-se que fui interiorizando uma compreensão cada vez mais vivida das limitações e desafios que se punham ao “socialismo real”, sem nunca isso ter chegado a por em causa as minhas convicções mais profundas. O impacto das viagens ao leste europeu deu-se a um outro nível que espero vir a esclarecer mais à frente.
Assim nos aproximámos paulatinamente do fim dos anos oitenta e constatámos que as nossas esperanças na abertura da URSS, e num novo curso que relançasse os nossos ideais nesse imenso país, se iam transformando em desilusões, desmembramento e caos. Por cá Cavaco reinava, numa aparência de impunidade, contra todos os vaticínios do PCP.
É altura de voltarmos à questão da perda de confiança nos dirigentes.
Os Congressos do PCP, em 1988 no Porto e em 1990 em Loures, revelaram uma enorme incapacidade para explicar a evolução da URSS, por um lado, e para dar resposta aos avanços da economia liberal, por outro. Eu creio mesmo que uma e outra coisa se confundem e são as duas faces da mesma moeda.
Como delegado ao XII Congresso, no Porto, eu estava ainda numa atitude expectante mas no XIII Congresso, já depois da queda do muro, vi-me forçado a reagir. Foi uma decisão meramente individual, obedecendo a um imperativo de consciência, sem cobertura mediática e sem a procurar (para minha surpresa o Público de 19 de Maio acabou por fazer uma descrição bastante fidedigna da minha intervenção no XIII Congresso).
Em Agosto de 1989, poucos meses depois do XII Congresso do PCP mas antes da queda do muro de Berlim, apresentei em S. Francisco, ao 11º Congresso Mundial da IFIP (International Federation for Information Processing), uma comunicação que revelava, em embrião, as teses que tenho vindo a desenvolver até hoje. Sucintamente: a transformação tecnológica actual está a tornar obsoleta a relação social de assalariamento e, por tabela, a forçar o capitalismo a uma transição que resultará num novo modo de produção. A experiência do “socialismo real” foi prematura pois não havia ainda, quando ocorreu, a base técnica onde escorar um novo sistema de relações de produção.
Esta tomada de posição feita em inglês e a milhares de quilómetros de Lisboa ficou no conhecimento de um círculo restrito de amigos.
No princípio de 1990, já em plena preparação do XIII Congresso, elaborei um texto intitulado “Do Socialismo Prematuro para o Socialismo do Futuro” que desenvolvia as ideias apresentadas em S. Francisco. A minha principal preocupação era conceber um conjunto de argumentos e raciocínios que permitissem a qualquer militante lidar racionalmente com o descalabro do sistema político do leste europeu. Essa preocupação resultava de me sentir politicamente responsável por tantos militantes que recrutara, ou dirigira, no decurso da minha actividade política.
O texto referido foi discutido na célula de empresa mas não foi encontrada uma fórmula para o usar no quadro dos “contributos” para as Teses do Congresso, tal era a distância que o separava do texto “oficial” proposto. Basta dizer que, nas Teses que vieram a ser aprovadas em Congresso, ainda se admitia a inversão da derrocada do "socialismo real" como, por exemplo, neste excerto:
“A situação é ainda instável e em alguns aspectos indefinida. Os povos destes países dentro em breve avaliarão melhor o que o socialismo lhes deu. O processo pode ainda trazer surpresas. O desmatelamento das realidades objectivas do sistema socialista e a sua substituição por relações capitalistas não serão um processo fácil. A vida já mostrou que não é fácil a passagem do capitalismo para o socialismo. Esperamos que demonstrará que a inversa também é verdadeira. Ainda mais porque contraria o sentido da história.”
É então que acontece um episódio curioso. Fernanda Barroso, então nossa "controleira" e companheira de Álvaro Cunhal, ofereceu-se para mostrar informalmente “ao Camarada” o incómodo texto que eu escrevera. Algumas semanas mais tarde trouxe de volta um papel manuscrito em que alguém tinha escrito qualquer coisa do tipo “revela um grande trabalho de reflexão”. E assim ficámos.
“Do Socialismo Prematuro para o Socialismo do Futuro” acabaria por ser publicado na revista Vértice em Julho de 1990.
Quando se realizaram as reuniões de militantes preparatórias do XIII Congresso, que teve lugar em Maio de 1990, eu fui indigitado como delegado. Antes que se procedesse à eleição comuniquei às dezenas de militantes presentes quais eram as minhas opiniões e deixei claro que, se me elegessem, eu faria uma intervenção no Congresso na linha do que antes explicara. Apesar destes avisos fui eleito delegado. Ao contrário de tantos outros não posso portanto queixar-me de ter sido impedido de expressar a minha opinião em pleno Congresso. Poder-se-á talvez argumentar que, não sendo figura mediática, ninguém receou as consequências de tal liberalidade.
Assim, quando me dirigi à tribuna do Pavilhão Multiusos de Loures para falar ao Congresso eu não o fazia por inerência, ou aproveitando um qualquer subterfúgio formal. O meu discurso tinha sido aprovado, ou pelo menos aceite como pertinente, por dezenas de militantes em assembleia convocada para o efeito.
O ruído de fundo, que as intervenções convencionais sempre propiciam, foi desaparecendo à medida que eu ia falando até se transformar em absoluto silêncio à medida que os delegados se apercebiam de que eu estava a dizer coisas que claramente escapavam às “normas” tácitas.
Comecei assim:
“O objectivo desta intervenção é transmitir-vos o meu contributo para a questão mais candente que nós,comunistas, temos de enfrentar: como tomar o socialismo, de novo, uma perspectiva capaz de entusiasmar os povos. (Porque nós não somos daqueles que acreditam que o capitalismo seja eterno).
Tal implica, antes de mais, fornecer uma explicação para o que se tem estado a passar no Leste; tal explicação tem que ser rigorosa e credível, tem que conter pistas para o caminho que trilharemos no futuro; tal explicação, sendo produzida por nós, tem de basear-se no marxismo.
Tal explicação não a consegui encontrar nas Teses propostas pelo Comité Central. Tentarei explicar porquê. Em primeiro lugar penso que as Teses do CC deixam perpassar uma esperança, compreensível mas infundada, de que possa vir a ser estancado o decalabro no Leste. Pelo caminho que as coisas tomaram parece-me mais prudente partir do princípio de que haverá um retorno generalizado a formas de organização social e económica de tipo capitalista.”
E depois, entre outras coisas disse:
“Sustento que nos países de Leste nunca se implantou o socialismo, que não se implantou um novo modo de produção. Assim como o capitalismo não se construiu sobre a base material do feudalismo, também o socialismo não se podia edificar, e não se edificou, sobre a base material do capitalismo, a grande indústria mecanizada.”...
...“O socialismo chegará, estou seguro, tanto pela luta dos explorados como pelo desenvolvimento da tecnologia. Não posso concordar com um lugar-comum também incluído nas Teses do CC, que considera estar a ser «artificialmente» adiado o fim do capitalismo em consequência da revolução científica e técnica. Os sistemas sociais caducos dão-se mal com revoluções, mesmo tecnológicas; ou então não estariam tão caducos como estão.”
Quando eu acabei houve uma hesitação de silêncio e depois uma parte dos delegados aplaudiu. O que é mais espantoso é que nenhum dos oradores que me sucederam fez qualquer referência às “enormidades” por mim proferidas.
Mais do que a discordância relativamente às minhas opiniões, que ninguém expressou, considerei significativo o manto de silêncio que sobre elas foi lançado. Mais do que o desprezo pelas minhas opiniões o que me impressionou foi o menosprezo das questões incontornáveis que eu levantava. Foi muito duro para mim compreender que ninguém se preocupava com a angústia dos milhares de militantes que nesse momento viam o edifício das suas convicções abalado até aos alicerces.
Para ser justo devo acrescentar que esta atitude de fuga à responsabilidade se repetiu quando tentei sensibilizar os dissidentes do PCP, ao longo das diversas vagas que se sucederam e que eu fui acompanhando como a “Terceira Via”, o lançamento do INES em 1990, ou a reunião do Hotel Roma em 1991. O mesmo veio a suceder com a Renovação Comunista já no século XXI.
Apesar de as iniciativas dissidentes terem sido para mim uma fonte de esperança acabei por sentir que havia um certo “fulanismo”, como se a exibição dos cargos na academia ou nas autarquias e do currículo intelectual garantissem, sem mais, o sucesso do empreendimento. Ninguém se dispôs a assumir a responsabilidade de encontrar respostas para as questões que eu colocara. Até hoje.
No princípio dos anos noventa decidi auto-suspender a minha actividade partidária. Não me demiti nem fui, que eu saiba, expulso do PCP. Simplesmente deixei de militar. Nunca encarei a hipótese de aderir a qualquer outro partido.
Em 2003 publiquei o livro “Do Capitalismo para o Digitalismo” para dizer que a queda do “socialismo real” não tornou o capitalismo insuperável. É esse o pântano ideológico em que a esquerda se tem atolado nos últimos anos.
Não se trata de inventar, à pressa, novos “amanhãs que cantam”. Os amanhãs cantarão inevitavelmente façamos nós o que fizermos; trata-se de saber se ainda queremos participar na escolha da melodia e do poema.
No próximo capítulo vou tentar explicar por que é essencial ter sempre uma utopia pós-capitalista no horizonte e também por que é que isso só será possível quando fizermos o “luto racional” da experiência soviética.
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