O futuro digital radioso
Público, 29.04.2008, Desidério Murcho
Chris Anderson, editor-chefe da revista Wired, publicou recentemente nesta revista um excerto do seu novo livro, Free, a publicar em 2009 pela Hyperion. Nesse artigo, cujo título pode ser traduzido por Gratuito! Porque 0,00? é o futuro dos negócios, Anderson fala dos diferentes tipos de negócios digitais rentáveis.
Dado ser tão fácil copiar e distribuir músicas, livros, etc., na Internet, e dada a mentalidade que se instalou de que tudo na Internet é gratuito, um negócio digital só é rentável quando temos uma carteira gigantesca de clientes, dos quais cerca de um por cento pagam o serviço. É o que acontece com serviços como o Flickr e outros: é quase tudo gratuito, mas se quisermos mais umas funcionalidades pagamos uma ninharia anual. E isso é suficiente para sustentar o negócio - desde que esse serviço atinja milhões de pessoas.
É por isso que o futuro digital não é radioso. Um músico, escritor ou engenheiro de software só consegue tornar o seu produto rentável caso seja usado por milhões de pessoas - para que cerca de um por cento delas pague o suficiente para esse criador viver. Só é possível pensar que isto é um futuro radioso quando se pensa que o trabalho criativo é gratuito. Mas o trabalho criativo não é gratuito, e quanto mais sofisticado for, quantas mais horas e talento requer, mais caro é. A ideia de que o freeware é gratuito, por exemplo, é ilusória: quem o paga, paradoxalmente, é quem o faz - e quem ganha com isso é quem o usa. É o mundo às avessas.
Outro modelo do nosso futuro digital é na realidade bem velho: é apenas o triste conceito da televisão aberta. Na televisão aberta, o consumidor não paga directamente os filmes, notícias e documentários que consome. Paga indirectamente, comprando produtos que são mais caros para poderem ser publicitados na televisão, e são esses anunciantes que pagam directamente o que o consumidor tem a falsa impressão de consumir gratuitamente. O gratuito, claro, sai caro. Como os anunciantes estão interessados em atingir o maior número possível de consumidores, impera na televisão aberta o populismo. A Internet está a ficar cada vez mais igual à televisão aberta, precisamente porque vive da publicidade e a publicidade vive da quantidade bruta de pessoas que a consomem.
O nosso presente digital é feito de grandes companhias a ganhar muito dinheiro à custa da frivolidade populista e da exploração de criadores talentosos que tornam a Internet interessante mas que vêem o dinheiro passar ao lado. Como pode alguém pensar que este mundo é maravilhoso? Bem, para o director da Wikipédia, por exemplo, é realmente maravilhoso. Esta enciclopédia é feita com o trabalho gratuito de muitas pessoas. Quem quiser, pode fazer donativos. E há sempre quem faça - os tais cerca de um por cento. Mas precisamente porque a Wikipédia é gratuita, todo esse dinheiro vai para o director, advogados e secretárias - mas não para quem realmente escreve a Wikipédia. É este o verdadeiro rosto da nova economia digital: escravatura de cara alegre.
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Este interessante texto passou um bocado ao lado da nossa blogosfera, mais preocupada que está em seguir o rançoso dia-a-dia da vida política. Trata de questões importantes como o significado e o valor do trabalho criativo e também das negociatas que se fazem à sobra dos aparentemente bem intencionados fornecimentos gratuitos.
Eu até acho que o nosso sentido crítico devia ser estendido a muitos outros domínios onde as lógicas do zero, ou do preço subsidiado, funcionam tais como: as várias "tolerâncias zero", os "zero acidente", os "zero calorias", o "software livre" e os serviços "gratuitos" prestados por empresas ou pelo Estado Social.
O método consiste em perguntar sempre: (1) quem usa realmente essas gratuitidades ? (2) quem é que acaba por pagá-las ? (3) quem é que enriquece pelo facto de elas existirem ?
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