Saturday, April 26, 2008

O meu 26 de Abril



Acordei com um barulho inusitado. Não fazia ideia nenhuma de quanto tempo dormira ou mesmo de como viera do interrogatório dos pides até à cela.
A verdade é que não era normal ouvir tanto ruído através daquela porta.
De repente um grito: "assassinos, querem-me matar !"
Saltei da cama e cambaleei até à janela. Um fuzileiro rondava lá em baixo com a G3 às costas, como eu tantas vezes vira fazer nos quartéis da marinha. Algo tinha acontecido pois normalmente não se avistava ninguém daquela janela.
O ruído no corredor da prisão não cessava de aumentar e, sem mais, abre-se o postigo da porta e vejo aparecer a barbicha do rapaz da cela em frente à minha, que eu só conhecia por espreitar pela fresta quando lhe entregavam a marmita da comida (soube mais tarde tratar-se do Miguel Judas);
"diz que houve uma revolta militar e que vamos ser libertados", e desapareceu.
Ainda a tentar encaixar o significado daquilo que ouvira vejo a porta da cela projectar-se para trás e aparecer a figura imponente do "calhau com olhos", tenente Xavier num contexto mais formal.
Era um latagão de um metro e noventa, quadrado, com uma cara enorme pontuada por algumas bexigas. Fora meu instrutor nos fuzileiros e depois, ao mesmo tempo que eu, fizera a comissão na Guiné.
Olhou para mim e disparou: "qué que fazes aqui ?". Eu não tinha qualquer razão para supor que o "calhau com olhos" fosse um gajo de esquerda, antes pelo contrário; "sou acusado de pertencer ao partdo comunista", balbuciei. Fez uma expressão de incredulidade.
"Vai lá para fora" foi o mais elucidativo que o "calhau" conseguiu articular.
Soube depois que o grito que eu ouvira minutos atrás "assassinos, querem-me matar" fora de um preso que vira entrar o "calhau" na sua cela, de G3 a tiracolo, a dizer-lhe, sem mais nem menos, "lá para fora".
No corredor da prisão havia um caos total, cada um tentando perceber se íamos ser fuzilados ou libertados. Ao fim de algum tempo lá apareceu um oficial mais polido que nos explicou o que estava a acontecer.
Então foi só esperar que a junta de Salvação Nacional aceitasse libertar todos os presos e não apenas alguns. A comunhão dentro da prisão era completa e reencontrei a minha mulher que estivera noutra ala.
A meio da noite fomos libertados através de um corredor que rompia uma multidão de milhares de pessoas, que gritavam e erguiam punhos, numa experiência absolutamente inesquecível.
Quando dei com os meus sogros e o meu filho de três anos verifiquei que tinham o para-brisas partido. Alguém que circulava entre a multidão fora acusado de pertencer à PIDE e, na refrega, o vidro partira-se.
Mas quem é que se ralava com uma ninharia dessas ? desandámos todos para casa.
O "calhau com olhos" nunca mais o vi. Gostava de lhe agradecer.
Disseram-me há dias que já morreu. As voltas que a vida dá...
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