O artigo de Pacheco Pereira no Público sobre a guerra colonial e as respostas de Vitor Dias suscitaram a minha atenção e o desejo de dar um testemunho pessoal.
O que eu acho curioso nesta discussão é que está implícita a ideia de que fugir à guerra estava ao alcance de qualquer um, que era uma decisão possível para todos de forma igualmente fácil.
Como se as diferenças económicas, de classe e de instrução não tivessem influência nesta questão.
Eu, que era militante do PCP, estudante universitário vindo de uma família modesta, nunca percebi verdadeiramente o que deveria fazer se decidisse não ir para a guerra.
A generalidade dos jovens portugueses vivia situações bem piores do que a minha. Para a esmagadora maioria a hipótese de fugir nem sequer se colocava. Por isso, embora o texto do JPP seja excelente, ele está fundamentalmente enviesado, tomando uma pequena parcela dos jovens portugueses pelo todo.
A orientação do PCP aconselhava a partir para a guerra juntamente com os outros compatriotas e a tentar usar a situação para trabalho político.
Devo dizer que nos fuzileiros, onde me integrei como tenente de 1968 a 1970, numa comissão na Guiné, havia muita gente de esquerda especialmente entre os marinheiros e cabos. Havia muitas trocas de impressões de carácter político entre nós.
Assisti em pleno mato a uma explosão de alegria das tropas sob o meu comando (cerca de duzentos homens) quando souberam, via rádio, que Salazar caíra da cadeira e fora afastado do governo.
Também tive oportunidade de viver em Bissau, em 1969, uma revolta dos fuzileiros. Tomaram conta do quartel e recusaram submeter-se à autoridade do Comando Naval da Guiné até que as suas reivindicações fossem satisfeitas.
Ninguém se atreveu a desalojá-los militarmente e o comandante da Marinha na Guiné foi forçado a conferenciar com os insurrectos no próprio quartel e a ceder às suas reivindicações.
Penso que uma acção como esta indicia um elevado grau de organização.
Há no entanto uma história que me marcou mais do que certas situações de combate e que escapa a estas contabilidades ridículas da coragem de quem foi e de quem não foi à guerra.
A certa altura um grupo do PAIGC foi interceptado quando atravessava o Cacheu numa piroga e bombardeado. Os corpos ficaram a boiar no rio e, como as correntes sofriam a influência das marés, passavam em frente ao meu acampamento em Ganturé, umas vezes para baixo outras vezes para cima.
Farto daquela cena tétrica, meti-me num bote de borracha e resolvi ir recolher um dos corpos. Tratava-se de um dirigente ou "comissário político" como então se dizia.
Ao abrir a mochila do homem encontrei, entre outras coisas, encharcado, um livro que lera pouco antes na minha própria casa. Um livro que guardo ainda: "Filosofia Marxista - Compêndio Popular", V. G. Afanassiev, Editorial Vitória, Rio de Janeiro.
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