e os respectivos comentários. Tomo a liberdade de transcrever aqui um, da autoria do conhecido comentador viana (como resposta ao João Galamba, de quem são as citações):
"Se por religiosos entendermos aquelas pessoas que acham que existe uma ordem natural das coisas — uma realidade objectiva, uma verdade que a que o homem se deve submeter — então a demanda 'existencial' da ciência não passa de religião recauchutada"
Há aqui uma grave incompreensão do que é e o que pretende a Ciência. Todos acreditamos. Constantemente. Em particular, que existe uma ordem ou causalidade inerente à realidade. Era impossível funcionarmos se não fosse assim. Acreditamos que o Sol vai nascer amanhã, que o chão não vai desaparecer debaixo dos meus pés quando der o próximo passo, que se não me desviar daquele carro que vem na minha direcção sou atropelado. O João acredita, espero, nisto tudo. Quer queria quer não acredita na existência de causalidade numa realidade ("objectiva", fisicamente percepcionada) que o circunda. Se reduzirmos a religiosidade a uma mera crença numa ordem natural, numa realidade "objectiva", na existência de explicações causais, então somos todos religiosos (inclusivé os cientistas, e não apenas porque acreditam na causalidade). Até os animais seriam religiosos (pois ajem como tal). Portanto, ser religioso não é apenas o que o João afirma. A diferença essencial, na minha opinião, é que alguém religioso acredita sem sustentação empírica. Poderia ser ainda mais restritivo: é religioso em particular quem age com base em crenças (sem sustentação empírica) relacionadas através dum sistema (segundo esta definição, por exemplo quem acredita numa entidade divina, mas nada faz como resultado dessa crença - ex não reza, e não tem qualquer outro tipo de crença associada - ex que há um profeta, não é religioso).
A Ciência, pelo contrário, pretende encontrar sustentação empírica para todas as "crenças" que constituem o "conhecimento científico." É uma diferença radical. Mas a razão de ser da Ciência e da Religião é a mesma: explicar a realidade. A sobreposição da Ciência e da Religião, quanto à motivação, é óbvia quando olhamos para as religiões mais primitivas, do tipo animista. Mas à medida que a explicação empírica da realidade foi ganhando consistência, a religião foi recuando cada vez mais. Com Copérnico, Newton, Darwin, Freud, Einstein...
"No fundo, pretende simplesmente encontrar algo que nos diga como o mundo é, aliviando-nos da responsabilidade de existir."
Nada na Ciência é desresponsabilizante. Pelo contrário, com informação, conhecimento, vem responsabilidade. Se nada sei, nada posso fazer com objectivo, e portanto posso ser completamente irresponsável. "Não sabia que a ponte que desenhei podia cair, portanto não sou responsável. Não sabia que expôr uma criança a filmes violentos era para ela traumático, por isso não sou responsável." Nada na Ciência induz à inacção, ou alivia. Copérnico, Darwin, Freud, Einstein, induziram e induzem muita angústia existencial. Não me parece assim que o conhecimento científico alivie de algo modo a responsabilidade de existir.
"Isto não pretende desvalorizar a biologia, mas apenas rejeitar a utilidade de um entendimento naturalistico do homem. Por outras palavras: defendo a irredutibilidade da cultura à natureza."
A discussão do "nurture vs. nature", que vem no esteio da ascensão da sociobiologia, é velha e estéril. A maior parte dos cientistas (biólogos, psicólogos, sociólogos) e filósofos envolvidos aceita hoje que quer a biologia quer a cultura participam na construção do que qualquer ser humano é. Rejeitar a influência da biologia na cultura contradiz o que é óbvio, e portanto de certo modo equivale a uma crença religiosa (experimente substituir "defendo a" por "creio na").
"Se quiseres, a pretensão da ciência em transformar-se em cientismo (em algo que desacredita a verdade da religião) é, por muito que o negue, uma nova forma de teologia."
A Ciência não tem essa pretensão, e apenas indirectamente desacredita a religião, pois não é esse o seu objectivo. O que acontece é que a Ciência progressivamente tem vindo a disponibilizar explicações alternativas às da religião, as quais "fazem mais sentido" para o ser humano comum (porque baseadas em constatações empíricas). E portanto este necessita cada vez menos da religião para compreender a realidade que o circunda.
Uma discussão imperdível. Parabéns aos seus intervenientes.
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