Este título era tão previsível que, do alto da minha intrigante conta à ordem no BPI, apostei na sua aparição num prazo de 48 horas depois de a primeira bomba ter caído. Falhei na data e no sítio (por pouco mais que um oceano), o que não prova rigorosamente nada, nem sequer que a perpétua busca de ressonância alusiva em títulos alusivamente ressonantes conduz quase sempre à previsibilidade.
Sem olhos em Gaza, de qualquer forma, é uma descrição que não parece despropositada ("Por Quem os Sinos Dobram", ou "A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty" seriam opções manifestamente piores). Ter uma "opinião" sobre o que se passa hoje em Gaza é o equivalente intelectual a brincar ao quarto escuro com duas primas gordas. Eu próprio, alguém cuja opinião tem sido ansiosamente aguardada, ainda não encontrei qualquer indício de possuir sequer as faculdades necessárias para emitir uma daquelas "opiniões" que se pode ter sobre "o assunto". Pela razão óbvia: tenho um preconceito inultrapassável em relação a Israel - um preconceito que, para agravar a coisa, tem uma forte componente racial. O preconceito em questão, por puro acaso (e é mesmo um acaso: um resultado de acidentes biográficos menores e de um sortido de motivos aflitivamente superficiais) é um preconceito positivo, mas, para o caso, isso não faz a menor diferença. O meu filo-semitismo (e devia haver uma maneira melhor de uma pessoa dizer que curte Judeus e lá as coisas deles) faz tanto sentido como o anti-semitismo de outro maluquinho qualquer. Como qualquer preconceito, é cego, monolítico, irracional e completamente estanque. Não permite gradações nem encoraja nuances. Terá uma inevitável e bastante limitada utilidade como ferramenta de configuração (cf. enfim, Burke, ou a dezena de chatos que o citam), mas é também uma forma muito boa de afunilar as respostas emocionais, e diminuir drasticamente as probabilidades de conseguirmos identificar a nossa própria imbecilidade.
Se a minha posição instintiva e imediata é acreditar que o IDF tem, não apenas o direito, mas o dever de bombardear todos os metros quadrados de planeta que bem quiser e entender, inclusivamente toda a área entre a farmácia velha de Fernão Ferro e ali o começo do pinhal, terei alguma justificação em colocar a hipótese de não estar realmente a pensar, mas sim de estar a sofrer um espasmo do neocórtex. Posso chegar a uma situação em que já nem terei a certeza de que as respostas continuam a obedecer ao mesmo cego preconceito positivo ou se são apenas já reacções tóxicas (e estive quase a falar do Benfica agora) às respostas motivadas pelos preconceitos opostos. Estes têm sido os melhores e mais consistentes motivos na história da humanidade para ficar calado, mas depois uma pessoa tem um blogue. É tudo muito complicado.
Alguém, digamos, extraordinário, chamou-me recentemente à atenção para uma feliz e acidental correspondência entre um dos greatest hits retóricos do Clive James (desenvolvido, por exemplo, em 3 ou 4 textos deste livro) e a sua própria forma de encarar o conhecimento. O argumento refere-se ao tipo de comportamento que podemos realisticamente esperar de indivíduos confrontados com o totalitarismo. A resposta lógica é que não é justo exigir a todos que cancelem o seu instinto para a auto-preservação em nome de de uma ética superlativa. Os casos excepcionais em que isso acontece são casos de heroísmo moral, um fenómeno que deve ser exaltado, mas não elevado a bitola. Clive James predicou uma das mais interessantes carreiras críticas do século XX numa versão intelectual desta prescrição. Não exigiu a si próprio o heroísmo da omnisciência, mas soube consolidar, com o zelo paciente e obsessivo do auto-didacta, uma base relativamente estável, assente nos requisitos mínimos elevados à máxima potência: a do senso-comum. A partir dessa plataforma, é possível efectuar incursões esporádicas para o desconhecido, sem grandes riscos retóricos no caso de a coisa correr mal.
Ter uma "opinião", enfim. O problema com o repertório de "opiniões" que se podem ter "sobre" Gaza é que não são comentário, mas caricatura. Não nos fazem pensar sobre o tema em questão; mas fazem-nos pensar duas vezes sobre quem as manifesta. Ter uma "opinião" pertinente sobre Gaza requer provavelmente um tipo muito intensificado de génio moral e, se a bitola for essa, ninguém tem legitimidade para fazer o log-in. O melhor a que se pode almejar é a um reduzido consenso que exclua o disparate. É possível intuir ali um terrenozinho entre o inócuo (que eu já devo ter anexado) e a barbaridade. Convém ocupá-lo antes que comecem a cair lá bombas também. A neutralidade absoluta não é uma expectativa racional; mas a tal estrutura de senso comum parece-me uma possibilidade razoável: apelar ao mínimo denominador comum e ao máximo que dele se pode extrair, utilizando os preconceitos como um mecanismo para seleccionar ênfases, e esperar que a competição de constrições de percepção opostas seja capaz de iluminar alguma coisa. Do alto da minha intrigante conta à ordem no BPI, nem sobre isto tenho certezas, mas espero que tenha ficado bem claro que tenho um blogue.
E com isto, deixo-vos este fofo gatinho com um yarmulke na cabeça
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