A Felicidade
Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int
O que é que se passa no céu? Todos temos uma ideia clara do que nos acontecerá se formos parar ao inferno: mais coisa menos coisa, ardemos lentamente sujeitos às maiores torturas… Mas e no céu? Em que é que as almas ocupam o seu tempo? A jogar às cartas, ouvir música e ver cinema? A conversar com as pessoas que amaram? (e se forem várias, quem fica com quem?). E como se evita o aborrecimento se não há um fim à vista? Se calhar o céu é céu precisamente porque nos deixamos de preocupar com estas questões… mas não deixa de ser algo aterradora a perspectiva de nem no céu conseguirmos identificar a felicidade.
E, no entanto, há quem a pretenda realizar na terra. Um livro recente de Richard Layard, um conhecido economista britânico, procura recolocar o conceito de felicidade no centro das políticas públicas. Layard retoma a tese utilitarista de Bentham que entendia que o principal objectivo de uma sociedade deve ser a maximização da felicidade de todos de forma igual. Por outras palavras, uma política deve ser prosseguida quando ela promove a felicidade do maior número. A dificuldade está em medir a felicidade. Layard socorre-se dos mais recentes estudos sobre a felicidade em disciplinas como a neurologia, psicologia e sociologia para tentar elaborar um critério operativo de felicidade. Desses estudos, podemos retirar algumas conclusões interessantes.
A primeira conclusão é que a felicidade pode ser medida: ela tem correspondência numa determinada actividade neurológica no cérebro.
A segunda conclusão é que a felicidade é profundamente relativa e "invejosa". A nossa felicidade resulta de uma comparação com a situação dos outros (assim, por ex., se todos ficamos mais ricos a nossa felicidade individual não tende a aumentar!).
A terceira conclusão é que a felicidade "educa-se": aquilo que nos traz felicidade muda com o conhecimento, educação e exposição a mundos diferentes. As nossas preferências não são estáticas. É por isso que quanto maior o nosso conhecimento da arte maior a felicidade que ela nos pode transmitir.
A quarta conclusão é que a felicidade aprecia a estabilidade e a companhia: a permanência no mesmo emprego traz, aparentemente, mais felicidade do que as mudanças frequentes para empregos melhores. No mesmo sentido, os estudos realizados indicam que as pessoas casadas são, em média, mais felizes que as solteiras, divorciadas ou separadas (por esta ordem decrescente de felicidade…), incluindo, com alguma surpresa, na sua vida sexual (o que o estudo não diz é se essa felicidade resulta de terem sexo dentro ou fora do casamento…).
A quinta conclusão é que a felicidade vicia e habitua-se facilmente. Assim, algo que nos dá grande felicidade inicial vai diminuindo a felicidade que nos traz à medida que nos habituamos. Só que, paradoxalmente, se voltamos a perder essa coisa, a infelicidade que isso nos traz é muito superior à felicidade que nos trouxe quando não a tínhamos. Isto explica a razão pela qual o dinheiro não traz (sempre…) felicidade. A relação entre nível de vida e felicidade individual é verdadeiramente relevante apenas ao nível do limiar da sobrevivência. A partir daí a correlação entre aumento do rendimento e aumento de felicidade vai diminuindo de forma notável: vamo-nos habituando a gastar o dinheiro que temos! Só que, se perdermos parte desse rendimento, seremos mais infelizes do que antes de o termos… É a velha sabedoria popular de que só damos valor ao que temos quando deixamos de o ter ou, expressa em sentido económico, de que o valor de um bem é mais elevado quanto mais raro for.
Estas conclusões são, nalguns aspectos, algo banais mas podem ter consequências importantes se levadas a sério. Elas colocam um desafio interessante na definição das prioridades das políticas públicas ao questionar a sua subordinação ao objectivo de maximização da riqueza associado ao crescimento económico e ao permitir introduzir outros elementos a que as escolhas públicas devem atender (como a estabilidade). Mas também servem para justificar algumas das políticas públicas actuais: as políticas redistributivas vêm a sua justificação reforçada pelo facto de o mesmo dinheiro trazer mais felicidade a quem menos tem; os impostos e outras medidas podem ser necessários, como refere Layard no seu livro, para evitar que as pessoas trabalhem demais (uma vez que após certo nível elas deixam de retirar mais felicidade da remuneração acrescida que recebem).
Há, no entanto, um problema delicado na utilização de um critério de felicidade para orientar as políticas públicas. É que a felicidade é, acima de tudo função das preferências individuais de cada um. A felicidade é menos um produto daquilo que nos acontece do que da forma como concebemos o que nos acontece. É mais autonomamente determinada (dependente da nossa concepção do sentido da vida) do que heteronomamente condicionada (dependente das circunstâncias que afectam o sentido da nossa vida).
É, neste ponto, que se coloca a questão filosófica da definição da felicidade. Desde logo, a felicidade é profundamente individual. Nesse caso, não devemos procurar fazer as pessoas felizes (seria a ditadura da bondade!) mas, como diz a Declaração de Independência Norte-Americana, garantir-lhes o direito à procura da felicidade.
E há várias formas de procurar a felicidade. Há os que procuram uma espécie de "felicidade moral", o que corresponde à ideia aristotélica de uma vida vivida com um certo sentido (que pode ser, como defendia São Tomás de Aquino, o conhecimento de Deus). A felicidade intelectual mas não sensorial. A felicidade é assim distinguida do prazer o que, confesso, não me faz muito feliz! Curiosamente, um outro utilitarista (Stuart Mill) aceita a ideia de prazer associada à felicidade: apenas não é o prazer que algo nos traz que determina a felicidade mas, antes, o prazer que isso pode trazer aos outros… (uma forma de felicidade que procuro incutir nos outros!). Em sentido bem diferente, há também a felicidade epicurista ou hedonista em que o nosso prazer é a nossa felicidade. Só que, o prazer dissociado de um sentido da vida reduz-se a uma mera satisfação ou contentamento. É um analgésico da felicidade: alivia mas não cura.
Hoje em dia, a procura da felicidade parece dividida em dois mundos bem opostos. Os que defendem uma felicidade modesta, segundo a qual apenas devemos retirar felicidade das coisas que podemos ter! (não admira que Santo Agostinho, o seu autor original, também defendesse que o único verdadeiro amor é aquele que apenas depende da pessoa que nos ama). Ou os que defendem uma felicidade pós-moderna, feita de "boas experiências" e da procura incessante do prazer, liberto de outro sentido que não a sensação momentânea que nos causa.
Enquanto no primeiro caso, a felicidade amarra-nos ao que temos e somos, no segundo ela transforma liberdade em instabilidade e insegurança permanentes. No entanto, se há coisa que os estudos recentes nos mostram é que a felicidade necessita de estabilidade. O prazer é maior quanto maior for a sua relação a um sentido da vida (a atribuição de sentido à nossa vida, o que é diferente do sentido da vida em geral). É este último que conduz o prazer à nossa felicidade.
É em relação com o sentido da nossa vida que podemos encontrar a felicidade. A felicidade é, em larga medida, uma competência que podemos melhorar. Não estamos predispostos a ser infelizes mas também não existem receitas para atingir a felicidade. Acima de tudo e tal como dizia Thomas Paine, é necessário para a felicidade do homem que ele seja intelectualmente fiel a si próprio. E a si o que é que a/o faz verdadeiramente feliz?
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