Hoje Lisboa acorda povoada de memórias, muitas delas tão anónimas que escondem heroísmos inimagináveis. Muitos deles, dos que vão caminhar até ao Alto de S.João, perdidos na multidão, vão ficar no silêncio da História e, no entanto, serviram para a construção dessa História.
Milhares e milhares de pessoas prestam hoje a última homenagem a Cunhal. Vêm do Alentejo e de toda a parte. Será um dia de ir ao poço da memória e matar a sede no deserto quando sonharam com o paraíso: a vez em que estiveram presos, a separação dos filhos, a impressão clandestina do Avante!, os longos exílios.
De trabalhadores manuais, de camponeses a intelectuais, todos tiveram um sonho e Cunhal era o sonhador que empunhava a bandeira. Haverá, por certo, muitas lágrimas de dor e despedida, mas também interrogações que se vão multiplicando: valerá a pena continuar ou este é o partido com que Cunhal sonhou e durante tantos e duros anos ajudou a construir? O Governo declarou um dia de luto nacional.
Cunhal nunca aceitou uma condecoração do Estado português, no seu despojamento, mas também porque recusava aceitar condecorações de Liberdade ao lado daqueles que nada fizerem para que ela existisse e se desenvolvesse.
A sua coerência, revolucionária, mas também ética, é um legado que deixa ao país confrangedoramente sem ética nem coerência.
O país, passada esta espuma emocional e este espasmo comunicacional, regressará à sua «apagada e vil tristeza». O povo que hoje desce à rua, em silêncio, não é por certo o mesmo que homenageou Amália ou orou pela irmã Lúcia.
É um povo que sonhou um país mais livre, menos dependente do Fado e Fátima, mais esperançado num mundo melhor e numa mais equitativa distribuição da riqueza e da terra.
Rogério Rodrigues, A Capital, 15/06/05
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