Wednesday, June 1, 2005

Um logro do tamanho da Europa





A “escandalosa” votação do Tratado Constitucional, ocorrida em França recentemente, deu origem a uma desenfreada actividade dos comentadores e dos políticos.

Não é caso para menos pois os condimentos estão todos presentes; a “incongruência” e o ineditismo do resultado, a excepção e o exemplo que pode ser imitado, o dramatismo e a imprevisibilidade das consequências.

Curiosamente todos parecem considerar imprescindível ao Tratado que se consiga o “apoio popular” através do voto mas ninguém se questiona sobre a exequibilidade de os europeus votarem conscientemente nos referendos. Ora o voto que está a ser pedido reveste-se de uma complexidade enorme, vejamos porquê.

Nas votações nacionais é preciso, para votar em consciência, ter uma ideia formada sobre o interesse comum, ou interesse nacional, e depois avaliar as propostas em confronto ponderando os interesses pessoais, de grupo ou de classe.

Trata-se de um processo muito complexo para o qual, aliás, a maior parte dos votantes não tem nem preparação nem paciência. Como todos sabemos essa dificuldade é resolvida através da fidelidade partidária ou da identificação com os políticos carismáticos já que são formas de dispensar análises profundas.

Quando se trata de votar nas questões europeias a complexidade é ainda muito maior. Não basta conhecer o “interesse nacional” é ainda necessário ter alguma ideia sobre o “interesse da Europa” e depois proceder a uma avaliação de como se harmonizam, ou em que medida conflituam, tais interesses. Para este efeito é ainda necessário ter uma ideia do “interesse nacional” dos países que, em conjunto e em concorrência com o nosso, pertencem à União Europeia.

A esse nível actuam grupos de pressão locais e nacionais dos diferentes países sendo preciso considerar também os lobbies internacionais e mesmo globais. Um factor adicional de complexidade deriva das diferenças culturais e, as mais das vezes, dos preconceitos e rivalidades que a história produziu.
No caso presente, a votação do Tratado Constitucional, ainda acresce a dificuldade inerente à tecnicidade da “linguagem” pois se trata de um texto legal.

Sendo, como se explicou, as escolhas muito mais complexas quando nos movemos no âmbito europeu seria de esperar que se aplicassem, para as facilitar, os mesmos remédios que são usados ao nível nacional e que descrevemos mais acima. O que acontece é que não existem a nível europeu, ao contrário do que sucede a nível nacional, nem partidos nem políticos em que os votantes possam delegar a construção das suas opiniões na base da confiança. Por isso não deve estranhar-se que, como aconteceu em França, nas votações do Tratado os cidadãos se limitem a seguir as recomendações dos políticos nacionais em que confiam no momento de votar.

Por tudo o que foi dito anteriormente parece legítimo deduzir que um número significativo de “nãos” ao Tratado acabará por vir dos europeus que, conscientes da sua própria incapacidade para escolher, não querem ser compelidos a dar uma anuência passível de ser mal usada em fases posteriores.

Quem desenhou o processo de aprovação do Tratado nos moldes em que vigora foi uma de duas coisas: ou ingénuo ou mal-intencionado. Ingénuo se realmente acreditava no funcionamento democrático do esquema e mal-intencionado se, conhecendo a impossibilidade da participação consciente dos europeus, pensou poder através da manipulação do processo encenar uma adesão popular inexistente.

O tiro saiu pela culatra mas serviu para demonstrar que a UE já será muito ambiciosa mesmo que se limite a ser um fórum permanente de negociação e de harmonização dos interesses nacionais.

Teria sido muito mais sério e operativo admitir que os povos delegariam nos seus governantes, como fazem para os assuntos estritamente nacionais, a negociação do melhor Tratado possível.

Veja o debate no DOTeCOMe Forum

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