Wednesday, July 27, 2005

Are you talking to me?




por Miguel Poiares Maduro

Are you talking to me?
Esta frase, proferida pelo personagem de Robert de Niro em Táxi Driver, é um clássico. Recentemente, numa eleição do American Filme Institute, foi considerada uma das frases mais marcantes da história do cinema. E, no entanto, em si mesma, esta frase é de uma banalidade confrangedora: "Estás a falar comigo?" Foi o contexto (a que propósito foram ditas mas também como foram ditas, como foram escutadas, e a quem e por quem foram ditas) que deu um significado particular a estas palavras. No filme de Scorsese as palavras do taxista Travis Bickle são mais uma expressão da sua intolerância crescente para com o mundo que o rodeia. Mais um indício da detonação iminente da sua loucura homicida: uma bomba prestes a explodir que Scorsese sugere de forma magistral através de múltiplos símbolos, como o contador de táxi que recorda o tick-tack de uma bomba.
A linguagem é feita de texto e contexto: o que dizemos não são apenas as palavras que proferimos mas também o seu contexto. Neste sentido, a linguagem do cinema, é apenas uma metáfora dos diferentes significados e usos paradoxais da linguagem na vida: ela tanto aproxima como afasta, tanto procura ser clara como se refugia na ambiguidade, tanto democratiza como é um instrumento de autoridade. Eis alguns exemplos:
What we have here is a failure to communicate (Cool Hand Luke, 1967)
A linguagem é acima de tudo entendida como um instrumento de comunicação. De acordo com a sociologia da evolução a linguagem existe para responder à nossa necessidade de cooperar. Para agirmos colectivamente necessitávamos de prever o que os outros iriam fazer e isso exigia um instrumento de comunicação. A linguagem surgiu assim como um instrumento de cooperação e acção colectiva. Não é por acaso que, no episódio da Torre de Babel do Génesis, a forma que Deus encontra para a impedir as ambições do povo que pretendia construir uma torre até ao céu é acabar com a sua língua comum.
Só que a linguagem é hoje também um instrumento de identidade e diferenciação. A nossa linguagem (que é mais do que apenas a língua) identifica-nos com um povo ou com uma classe social ou cultural. Diferentes línguas não são apenas diferentes sons são também diferentes formas de conceber as mesmas coisas. I love you, te quiero, ich lieb dich, não são apenas diferentes traduções do amor, são diferentes formas do entender (como abandono, conquista ou prazer).
As nossas linguagens são uma forma de reconhecermos "os nossos" e, por vezes, excluirmos os outros. A especialização e codificação da linguagem podem ser positivas: são atalhos de reconhecimento daqueles que nos são mais próximos, uma forma de construção de identidade e de comunicação mais profunda entre aqueles que partilham um certo código linguístico. Mas também podem ter muito de negativo: estratificam a comunicação e impedem um diálogo aberto. Nesta segunda dimensão, a linguagem separa em vez de unir.
Toto, I've got a feeling we're not in Kansas anymore (O Feiticeiro de Oz, 1939)
Este exemplo máximo do que os ingleses chamam um understatement (que a linguagem não me permite traduzir…) reflecte um dos paradoxos da linguagem: por vezes é através da ambiguidade que ela nos aproxima. Muitas vezes não se busca a clareza nas palavras que proferimos.
É assim no amor, onde existe essa enorme tensão entre a necessidade de comunicar profundamente mas, também, de preservar algum segredo. Wittegenstein dizia que as palavras disfarçam os pensamentos. Eu acho que, por vezes, elas também disfarçam os sentimentos.
Mas é assim também na nossa vida pública. Muitas vezes, a única forma de concordarmos não é sequer concordarmos em discordarmos. É sim, concordarmos em certas palavras atribuindo-lhes significados diferentes: as mesmas palavras, duas linguagens. Isto não evita o conflito mas pacifica-o e racionaliza-o. Deixa de ser um conflito entre valores diferentes a dirimir através de uma relação de forças para passar a ser um conflito de interpretação a resolver através de mecanismos de decisão racionais aceites por todos.
You can't handle the truth (A Few Good Men, 1992)
Mas linguagem também pode ser utilizada como um instrumento de poder. Uma forma de excluir os outros de certos círculos de conhecimento e decisão ou de se arrogar uma posição de superioridade. É isso que exprime a frase do general representado por Jack Nickolson em A Few Good Men: a incapacidade de alguns para lidar com certa informação justifica que lhes seja negado o acesso a ela. Subjacente, está uma tomada de poder por quem detém um certo código linguístico a cujo conhecimento é atribuída uma autoridade superior.
É a linguagem desprovida de outro sentido que não o impor um certo sentido da vida. Esta arrogância é hoje muito comum, se bem que de forma não claramente assumida, em certas comunidades intelectuais, culturais e científicas. Dizer, por exemplo: "sofri uma metamorfose existencial na minha inteligência crítica aplicada" em vez de… "mudei de ideias". Ou utilizar citações para impor uma pretensa supremacia (não é o meu objectivo aqui…). A linguagem complicada, erudita, difícil, é frequentemente usada como um instrumento de intimidação. É um pouco como aquelas pessoas que confundem o autoritarismo com a autoridade ou que vêem na doçura e gentileza um sinal de fraqueza e insegurança.
As palavras são também poder enquanto forma de reconhecimento social ou político. Ao contrário do que defendeu, a certa altura, Wittgenstein as palavras têm significado mesmo que o significante (a realidade que é suposto elas identificarem) não exista. Elas afectam a nossa percepção da vida mesmo que não existam nela. Num filme dos Monty Python há um personagem masculino que passa o tempo a exigir ter o direito a ter um filho. A certa altura, os seus companheiros, fartos de o ouvir, dizem-lhe: "mas tu és um homem, não podes ter filhos!" Ele responde: "pois, mas quero ter o direito a tê-los na mesma".
É por isso que hoje se batalha tanto pelas palavras. Quanto ao seu género por exemplo. E é verdade que as palavras, por vezes, reflectem mais uma estrutura de poder do que um significado neutral. Hoje, no nosso subconsciente, Deus é uma imagem masculina, mas na versão hebraica da bíblia (bem como noutras religiões) a palavra Deus tende a ser neutral do ponto de vista gramatical. Será que a tradução latina de Deus, atribuindo-lhe um género masculino, reflectiu uma estrutura social de poder ou foi uma pura coincidência? E será que essa atribuição de género masculino se reflectiu noutros aspectos da religião? Trata-se de um debate sobre o poder das palavras.
Oh Jerry, don't let's ask for the moon. We have the stars (Now, Voyager, 1942)
Diferentes expectativas traduzem-se em diferentes compreensões das mesmas palavras. Como escrevia Shakespeare na Tempestade: "disse mais do que queria dizer ou entendeu mais do que eu queria que entendesse." Traduzimos tudo o que ouvimos, no sentido em que o filtramos de acordo com os nossas expectativas ou os nossos desejos. A verdadeira comunicação é aquela em que a linguagem escrita consegue ser também uma linguagem de emoções. Em Lost in Translation, o filme de Sofia Copolla, não sabemos o que Bill Murray segreda ao ouvido de Scarlett Johansson na cena final: terá sido adeus ou até breve? As palavras que lhe atribuímos dependem da nossa leitura de todo o filme. Para mim é uma parábola sobre a dificuldade da linguagem das emoções. Johansson encontra em Murray alguém que consegue traduzir os seus sentimentos. Murray encontra em Johansson alguém que desafia os seus. Terá esse amor futuro? Ambos têm de abdicar de alguma coisa.
Não sei se ao falar de linguagem não utilizei uma linguagem demasiado complicada ou até várias linguagens. Escolha o leitor a sua. Este texto é seu. Por mim, e para citar novamente Wittgensten, "quando já não se tem nada para dizer, deve ficar-se calado!"

por Miguel Poiares Maduro
Miguel.Maduro@curia.eu.int

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