Em defesa de "Cândido"
Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int
Acredita num final feliz? Eu sempre preferi acreditar. É por isso que sempre simpatizei com o "Cândido", eterno optimista vítima do sarcasmo de Voltaire. Na personagem de Cândido, que permanecia optimista face às maiores desgraças, seguindo a filosofia do seu mestre Pangloss para quem todas as desgraças aconteciam para seu bem, Voltaire criticava o naturalismo optimista da condição humana da filosofia do seu tempo. Esse optimismo cego e atávico corre o risco de nos tornar passivos perante a vida, aceitando todas as adversidades sem as combater e sem tentarmos melhorar a nossa existência. Mas Voltaire enganou-se ao confundir Cândido com Pangloss e optimismo com resignação. O optimismo de Cândido é positivo, o que é negativo é o transformar esse optimismo numa filosofia passiva e acrítica da vida como a de Pangloss.
Na verdade, uma filosofia pessimista conduz ainda mais seguramente a um cepticismo imobilista. Para os pessimistas, mesmo o que a vida nos pode dar de bom é seguramente transformado em mau pela natureza humana. O que identifica um pessimista é o seu cepticismo face à natureza humana. Normalmente, isso esconde-se por detrás de uma concepção cínica do que se passa à sua volta que facilmente se transforma numa visão conspirativa do mundo. Para um pessimista há sempre alguma outra coisa por detrás de um gesto simpático, há sempre uma mentira escondida numa promessa, há sempre uma desilusão a seguir a uma ilusão. Da vida, dos outros e, por vezes, até de si próprios nada podemos esperar de bom. Na dúvida, deve-se presumir o pior! Só que isto conduz a negar qualquer capacidade transformadora na nossa condição humana. Não podemos melhorar-nos nem tentar melhorar os outros. A nossa relação com os outros só pode ser vista como estratégia: a bondade não convence, apenas o engano vence.
Claro que o cinismo inerente a uma filosofia pessimista nos dá uma posição confortável perante a vida. Podemos olhar o mundo de cima para baixo e ser sarcásticos com o "engano" dos outros. Talvez seja por isso que hoje em dia se encontrem muitos mais cínicos que optimistas. É bem mais fácil ter piada sendo cínico do que positivo. Sempre me diverti com a escrita de Vasco Pulido Valente mas sempre me perguntei como se sairia ele se lhe pedissem para escrever algo positivo durante algumas semanas…
Diz-se que a arte reflecte a vida e o pessimismo é hoje dominante na arte e até na filosofia. Será porque realmente o mundo nós dá hoje mais razões para sermos pessimistas? O pessimismo é consequência do mundo ou de nós? Adorno escreveu que depois do Holocausto já ninguém conseguia escrever poemas. Neste caso, a arte apenas exprime o mal do mundo. Mas será que o mundo se tem tornado pior? É que me parece que a arte se tem tornado mais pessimista.
Muitos dramas clássicos exprimiam um optimismo triste: na tragédia final estava sempre ínsita uma possibilidade de redenção humana. É importante não confundir optimismo com comédia e pessimismo com drama. Há tragédias optimistas porque acreditam na natureza humana. Mesmo Romeu e Julieta é uma peça optimista ao demonstrar que o amor é possível entre duas pessoas de famílias que se combatem. Shakespeare exprime algum pessimismo quanto ao contexto social que impede esse amor mas é optimista quanto à natureza humana que o concretiza. No lado oposto, o fantástico filme de S. Kubrick Dr. Strangelove, é uma comédia que exprime um enorme cepticismo quanto à natureza humana.
Da mesma forma, não se deve confundir um optimista com alguém feliz. Ser optimista pode é ser a melhor forma de reagir à infelicidade. Nem se confunda pessimismo ou optimismo com vontade de morrer. Será que um optimista é alguém deprimido que não se suicida ou, pelo contrário, ele não se suicida porque é tão pessimista que acredita que o que o espera na morte ainda é pior?... O pessimismo a que me refiro aqui é uma filosofia da vida assente num profundo cepticismo quanto à natureza humana.
Há uma forte tendência na arte actual para exprimir este enorme cepticismo. O que aconteceu? Onde foram parar todos os optimistas? Há duas explicações possíveis. A primeira, é que o crescente pessimismo é uma reacção aos limites da razão: a crença absoluta na razão do período iluminista revelou-se excessiva enquanto instrumento de promoção do desenvolvimento humano e pessoal e isso traduziu-se num enorme cepticismo face à natureza humana. O pessimismo antecipou, neste caso, a crítica pós-moderna à razão.
A segunda explicação é mais banal. É simplesmente mais fácil ser pessimista. Havia um tempo em que a arte mediatizava a vida, exaltando-a ou permitindo-nos esquece-la. Os seus tempos eram lentos pois lenta era a forma de viver a vida. Hoje a arte tem de ser mais rápida que a vida para poder ser consumida ao ritmo desta. Neste contexto, o cinismo é a forma mais rápida de fazer arte. É hoje mais fácil matar um personagem do que encontrar um razão para o fazer viver. Não se enganem, eu também não resisto ao gosto da tirada rápida e espontânea, da arte por instinto, do cinismo bem dirigido. Mas custa-me ver a arte reduzida a uma mera expressão do nosso pessimismo existencial.
Na vida, passa-se o mesmo. Ser optimista dá mais trabalho. Significa reconhecer que temos algum controlo sobre a vida e exige que estejamos dispostos a investir na nossa capacidade de nos transformamos e a transformarmos. Mas isso co-responsabiliza-nos. Somos co-autores da vida e não apenas os seus destinatários. É mais fácil ser pessimista e escondermo-nos no cinismo.
Em Portugal, uma sondagem recente indicava que mais de 70% dos portugueses estavam pessimistas. Seria importante clarificar bem o que isto quer dizer. Estar pessimista e ser pessimista são coisas diferentes. Até um optimista pode por vezes estar pessimista… Mas o optimista acha que pode fazer algo para vencer o pessimismo e assume essa responsabilidade. O importante é que os portugueses parem de agir como pessimistas, cínicos e conspirativos perante tudo o que se passa a sua volta, descrentes da natureza dos outros e, dessa forma, desculpando a sua própria natureza também. Um livro recente de Helmut Gaus faz corresponder as fases de desenvolvimento económico com os anseios e receios psicológicos colectivos. De acordo com esta tese, somos, em larga medida, os executores da nossos próprios receios…
Com o pessimismo acontece o mesmo que com as profecias: se as aceitamos, elas realizam-se, pois somos nós mesmos que nos tornamos nos agentes da vontade dos profetas.
Necessitamos de optimistas embora eu esteja algo pessimista quanto à possibilidade de os encontrarmos…
Miguel Poiares Maduro
miguel.maduro@curia.eu.int
No comments:
Post a Comment