O “Escritório do Futuro”... amanhã às nove e meia
Publicado em "O Diário" de 3 de Outubro de 1987
Chega-se ao 11º andar de um edifício de cimento e vidro pelas 9.30 horas se o percalço de um engarrafamento não ocorre.
O espaço de trabalho pode ser "open" ( descampado, em tradução livre) ou constituído por gabinetes de 3/4 habitantes cada. O que importa agora, o que distingue, é a presença em cada secretária de um terminal de computador ( para não complicar imaginem um televisor com teclado, que serve).
Tambem lá estarão, é claro, os apetrechos tradicionais: um bloco calendário, um cesto "IN/OUT", um estojo de miudezas como "clips" e elásticos, eventualmente um cinzeiro, mas como veremos mais adiante reduzidos a um papel decorativo. Uma manifestação de tradicionalismo, se quiserem uma ligação sentimental a um passado de mangas-de-alpaca.
Analisemos agora o comportamento desse individuo que, vencidos os engarrafamentos ao volante do seu automovel, pousa a pasta e pendura o casaco num cabide suspenso da ilharga do armário. Em certas situações pode ser que dedilhe um jornal, mas com o ar pouco atento de quem quer apenas ter a certeza de não deixar passar algo de especialmente importante. Posto o jornal para o lado, por vezes mesmo antes disso, os dedos procuram as teclas mais do que batidas, para iniciar a sessão de trabalho com o computador.
Este acto, que técnicamente pode assumir as mais variadas formas, corresponde ao antigo ligar da máquina de escrever, se era electrica, ou mais genericamente ao gesto de preparar a ferramenta com que se vai trabalhar. A diferença estará apenas na poténcia e variedade das fun‡óes proporcionadas pela "ferramenta" computador.
Muito provavelmente o primeiro serviço pedido será aquele que se vulgarizou como "correio electrónico". Como o nome indica permite trocar "correspondéncia" sem fazer viajar papéis ( os cientistas descobriram que os impulsos eléctricos são substancialmente mais rápidos do que os continuos).
O gesto primordial do "correio electrónico" é o de "abrir a caixa do correio", isto é, saber quem e quando nos enviou o qué. Tal pode, no entanto, ter consequéncias indesejaveis. Vejamos porquê.
O seu autor tanto pode pertencer a uma comunidade informática de dezenas de utilisadores trabalhando na área da Grande Lisboa como estar integrado numa rede com dezenas de milhares de membros espalhados por todos os continentes. Assim, feito o pedido de "abertura" da "caixa do correio", pode deparar-se com uma lista de "cartas" vindas tanto do parceiro da sala do lado como de um colega da Austrália.
O caso agrava-se indubitavelmente se o numero de tais "cartas" for, por exemplo, 174. O destinatário, nestes casos, sente que tem o dia estragado. Um dia não chegará, provavelmente, para ler nem que seja em diagonal todas as mensagens recebidas.
Então, perante a lista imensa, lá irá seleccionando e lendo aquelas que lhe parece poderem necessitar de atenção e eventual resposta mais urgente. Convem explicar, para os mais afastados destas coisas, que tanto a lista das mensagens como o respectivo conteudo são visualisados no "ecran" ( um pouco como se pudessemos receber as cartas da família do Norte no televisor lá de casa).
Claro que é reconfortante enviar uma mensagem, por exemplo para Singapura, e saber que o destinatário poderá lé-la daí a instantes ( a não ser que haja bronca na rede telefónica, claro); mas não há bela sem senão. Neste caso, o senão resulta do abuso na utilização destes meios; há quem envie mensagens a propósito e a despropósito. O pior ainda é o abuso das facilidades da redistribuição de mensagens pois nestes casos os prevaricadores nem sequer tém que se dar ao trabalho de produzir um texto original.
Funciona assim: alguem recebe uma mensagem e julga que o seu conteudo é importante para os senhores A, B e C. Então junta ao texto que recebeu uma frase inteligente tipo "penso que este assunto é extraordináriamente importante para si" e envia para os trés presumíveis interessados. Alguns destes podem ter uma ideia semelhante e assim nasce uma assustadora reacção em cadeia. As mensagens que chegam depois de ter passado por vários destes "distribuidores" são particularmente irritantes porque obrigam a ler todos os comentários bacocos antes de poder decidir se o conteudo é, ele próprio, tambem bacoco.
Tal como as cartas em papel estas, as electrónicas, uma vez tratadas são muito bem arrumadinhas em ficheiros magnéticos ( versão actual dos dossiers).
Mas o computador não serve apenas para "correio electrónico". Ao longo do dia vai servindo como:
- Máquina de calcular
- Máquina de escrever (associado a impressoras de qualidade)
- Prontuário ortográfico automático- Enciclopédia técnica
- Consultor técnico em vários domínios
- Agenda e gerador automático de avisos
- Intercomunicador ( mensagens escritas que interrompem o destinatário) etc, etc.
Assim, a ligação do trabalhador a esta super-ferramenta é muito estreita e só quando uma quebra na corrente inviabiliza a sua utilização é possivel retomar os placidos rituais da leitura e do despacho dos papéis (que apesar de tudo continuam a existir, claro).
Moral da história...
A descrição feita não pretende ser exaustiva, e muito menos rigorosa, mas destina-se a divulgar em traços largos o ambiente de trabalho daqueles que, já hoje, vivem uma versão necessáriamente mitigada do "escritório do futuro". Se considerarmos redes com centenas ou milhares de utentes, acesso a grandes bases de dados locais e remotas, a disponibilidade permanente de tais meios e a sua efectiva utilização nas tarefas do dia a dia estaremos a falar do ambiente de trabalho de umas quantas centenas de portugueses.
Se atendermos á previsível generalização deste tipo de ambientes, que tudo leva a crer serão o habitat de cada vez maior numero de trabalhadores dos serviços, é facil perceber como se torna importante analisar as "ilhas" já hoje existentes.
Desde logo o aumento enorme da velocidade de circulação da informação, bem como os volumes disponíveis, se por um lado permitem resolver problemas complexos e numerosos impóem tambem um elevado ritmo de trabalho e situações de atraso permanente relativamente ás solicitações. As relações com os superiores hierarquicos tendem a perder o caracter de relação social ( as conversas para definição das tarefas e suas implicações tendem a ser substituídas por listas "electrónicas").
Os próprios métodos de avaliação do trabalho realizado sofrem grandes alterações pelo recurso a ferramentas do tipo "controle de projectos", memoranduns automáticos e outras (é por exemplo possivel saber em qualquer momento quem está a trabalhar com determinado computador, é possivel pór o computador a verificar se todos os participantes pretendidos numa reunião tém as suas agendas livres nesse dia e hora, etc) .
Tambem se verifica uma redução das deslocações e dos contactos pessoais delas derivados. Os contactos profissionais, em que se opera uma substituição do telefone pelas mensagens escritas, tendem a formalizar-se. O esclarecimento das situações pode tornar-se mais dificil pois a forma escrita, passível de utilização posterior, retira alguma maleabilidade e espontaneidade na superação dos problemas.
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Muitos analistas prevéem um crescimento enorme do numero de empregados nos serviços o que parece contraditório com as produtividades gigantescas dos meios tecnológicos descritos.
Com efeito já hoje são observaveis reduções nos efectivos de certas tipos de profissões. Alguns exemplos:
- As(os) dactilografas - Hoje, como vimos, cada um pode escrever os documentos que desejar no seu próprio terminal
- As(os) secretárias - As funções de atendimento telefónico durante as auséncias podem ser resolvidas pela telefonista, se dispuser de um terminal para enviar um aviso para a "caixa do correio" do destinatário da chamada. O arquivo é, como vimos, cada vez mais electrónico.
- Os operadores de recolha de dados - A disseminação de dispositivos cuja utilização produz, automáticamente, o registo electrónico está a ser feita a ritmo acelerado (veja-se o caso das transacções bancarias através das máquinas).
Parece pois legítimo concluir que as operações tradicionais do escritório estão sujeitas, tal como as da agricultura e da industria, a um processo de progressiva automatização e provavel redução de efectivos.
Com a produção agrícola e industrial garantidas por robots ou por trabalhadores baratos do "terceiro mundo" e com o trabalho dos escritórios entregue a um reduzido numero de operadores de máquinas complexas, o nosso destino na Europa e na América do Norte, dizem alguns analistas, é tornarmo-nos gigantescas colmeias de super-produtivos "prestadores de serviços".
É neste ponto que me lembro sempre do magistral "Ghost-busters" em que um grupo de jovens empreendedores resolve montar uma empresa para prestar serviços de "caça de fantasmas" na pragmática New York.
Seja como fór:
- O escritório não voltará a ser o mesmo
- Os "serviços" de que se ocuparão tantos milhões dos nossos filhos e netos ainda estão por inventar, bem como as relações socio-económicas que lhes hão-de corresponder.
...mas isso terá que ficar para outra altura.
Fernando Penim Redondo
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