No humor literário anglo-saxónico existe uma figura cuja centralidade é tão manca que deu origem a um pantanal de teorias: o cínico rancoroso.
V. S. Pritchett (que todos os leitores do Pastoral Portuguesa, a bem ou a mal, um dia aprenderão a venerar), tentou a seguinte explicação, num ensaio clássico sobre Mark Twain:
«Twain (...) represents the obverse side of Puritanism. We have never had this obverse in England, for the political power of Puritanism lasted for only a generation and has since always bowed if it has not succumbed to civilised orthodoxy. If an Englishman hated Puritanism, there was the rest of the elaborate English tradition to support him; but American Puritanism was totalitarian and if an American opposed it, he found himself alone in a wilderness with nothing but bottomless cynicism and humorous bitterness for his consolation.»
Como qualquer generalização, isto é vulnerável ao ocasional exemplo de excepção (Swift, que na definição de Pritchett seria americano), mas impõe, no abstracto, uma certa lógica cambaleante.
O “bottomless cynicism” e a “humorous bitterness” fundaram uma tradição cómica indiscutivelmente americana, que sobreviveu às condicionantes que a fizeram nascer; a resposta de combate teve tantos aderentes que acabou por se tornar ela própria uma ortodoxia. Essa tradição, que começou com Twain, que inclui Ambrose Bierce e H. L. Mencken, e que até admite vitais modulações (Gore Vidal, que é a face aristocrática do estereótipo, e Kurt Vonnegut, que representa o seu lado mais meigo e resignado), veio também a influenciar uma escola de stand-up (oposta à comédia "de observação"), de que Lenny Bruce é o exemplo mais conhecido, e Bill Hicks o mais talentoso.
Na hierarquia dos meus comediantes de eleição, Hicks não faz sequer parte do pódio. Prefiro a verborreia surreal de Ross Noble, a pose anti-social de Larry David, as torrentes de non-sequiturs de Demetri Martin e Mitch Hedberg (uma descoberta recente), ou a eloquência chula de Richard Pryor.
Mas Bill Hicks tem cá um lugarinho, conquistado a ferro e fogo. No seu melhor, Hicks era um Gore Vidal sem o verniz patrício, ou um Vonnegut sem a calma farfalhuda. Um pessimista amnésico: aquele que espera o pior da raça humana, mas que reage sempre com espanto quando esta corresponde às suas mais baixas expectativas.
Que Hicks tenha conseguido trabalhar toda a sua carga negativa em rotinas por vezes incrivelmente cómicas parece quase um acidente. A sua misantropia (ou a sua - uma expressão melhor para a qual agora não me lembro de equivalente - self-righteousness) estava sempre a um curto passo de rasteirar o seu talento, embora seja inegável que também o tenha alimentado. Ainda assim, há alturas em que Hicks transmite a ideia de que o palco está abaixo dele; o que ele deseja é um púlpito, de onde possa vociferar as suas sisudíssimas missas negras.
Mas há muitos, muitos motivos para amar incondicionalmente Bill Hicks, e até para uma rendição parcial ao mito. E motivos políticos, convém explicar isto às crianças, não estão entre os principais. A “comédia de intervenção” de Hicks cumpre exactamente o mesmo propósito, e deve apelar às mesmas sensibilidades, que os míticos “State of the Union” alternativos que Vidal dava nos anos 70, ou que os melhores livros de P. J. O’Rourke. Quem consome estas coisas à procura de nutrição ideológica está a cometer um erro duplo.
Tal como muitas das pessoas de quem me sinto politicamente mais próximo, Hicks não era bem de Esquerda, nem bem de Direita (apesar de alguns equívocos, e de ele próprio ter definido o seu espectáculo de palco como “Chomsky with dick jokes”); pertencia antes ao partido mais numeroso e mais balcanizado do planeta: o Partido Libertário no Interior das Nossas Cabeças; aquele que sanciona moral e juridicamente tudo aquilo que é apetitoso.
(*Caso alguém esteja interessado, o meu enclave político é mais ou menos este: uma utopia fiscal laica, com um sistema de saúde universal financiado pela generosidade dos magnatas proprietários dos inúmeros casinos e agências de apostas (que existem em cada esquina), e que me permita passar uma tranquila tarde de Domingo no meu bunker, empunhando a minha arma semi-automática adquirida legalmente e sobre a qual não paguei um cêntimo de imposto, fumando um charro monstruoso adquirido legalmente e sobre o qual não paguei um cêntimo de imposto, à espera que as três louras com quem coabito em tripla união de facto cheguem dos seus respectivos empregos no hipódromo local, para podermos ir à cerimónia de casamento civil dos nossos vizinhos imigrantes homossexuais.
No fundo, uma espécie de cruzamento entre o rancho de Hunter S. Thompson, a cabeça de Milton Friedman, o palácio de Tibério e a social-democracia sueca.
Admiro-me eu de ter poucos amigos.)
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