O famoso blasfemo João Miranda escreve todos os sábados no Diário de Notícias desde que João Marcelino assumiu a direcção deste jornal.
No seu último artigo, para elaborar uma das suas teses ultraliberais do costume, escreve: "dado que a ópera é tendencialmente uma actividade que interessa muito mais aos ricos que aos pobres, existe uma grande probabilidade de serem os que têm menos escolhas a financiarem os que têm mais escolhas".
Eu não sei a que contexto se estará a referir o João. Aceito que a ópera não é um espectáculo fácil, mas será por isso que só é apreciado por ricos? Será que só os ricos têm “bom gosto”? Será que não passa pela cabeça do João que qualquer pessoa pode interessar-se por ópera, mas não ter condições de a frequentar?
Quando vivi em Nova Iorque, frequentava com regularidade a Metropolitan Opera. Havia uns lugares mais em cima, de onde só se distinguia os detalhes dos intérpretes no palco com o auxílio de uns binóculos. Era o chamado “family circle”. Cada bilhete custava cerca de 20 dólares. Na Metropolitan Opera. Havia uma grande procura para estes bilhetes, bem como para todos os outros (para todas as bolsas a partir de 20 dólares). Certamente quem procurava o “family circle” ou os outros lugares mais longe do palco não era rico.
Também havia as lagostas. O João Miranda dirá provavelmente que as lagostas “interessam muito mais aos ricos do que aos pobres”. As lagostas de Long Island são famosas (e já o eram antes de o Cosmo Kramer ser preso por causa delas, num célebre episódio de Seinfeld lá passado). Existe uma cadeia de fast-food de lagosta (“Red Lobster”). Em vilas portuárias dos arredores de Nova Iorque, com nomes como Port Washington ou Port Jefferson, podem comer-se lagostas em pubs. Uma lagosta inteira de uma libra, acompanhada por molho de manteiga, uma sopa do dia, bolachas de água e sal, uma dose de batatas fritas, molho tártaro e “cole slaw”. Tudo isto, mais cerveja e gorjeta, fica por dez dólares num pub de Long Island. Será assim a lagosta “comida de ricos”? Não são nada ricas as pessoas que frequentam estes “pubs”.
Claro que isto só era possível em Nova Iorque. Uma das coisas de que eu mais gosto em Nova Iorque é que quem conheça bem a região e saiba ir ao sítio certo pode encontrar tudo, seja o que for, barato (excepto comida francesa). Antes de lá chegar, nunca tinha provado lagosta. E nunca tinha ido à ópera. Gosto muito das duas coisas mas, de facto, como não sou rico, desde que de lá voltei nunca mais comi lagosta. E nunca mais fui à ópera. No entanto nunca consideraria que a lagosta ou a ópera só interessam aos ricos. Tal consideração seria elitista e provinciana.
O que é então tipicamente “de rico”? Não que eu seja rico, como já disse, mas ser rico não é ter interesse pelas melhores coisas da vida. Qualquer pessoa tem interesse por elas; só os ricos, porém, é que podem apreciar muitas delas com regularidade, sempre que lhes apeteça. Ser-se rico é mais do que só se viajar em classe executiva ou só ficar em hotéis de cinco estrelas ou só fazer compras no El Corte Inglés ou só comer nos restaurantes indicados pelo Duarte Calvão. Ser-se rico é usar o muito dinheiro que se possa ter para se distinguir das demais pessoas, quando não se é melhor do que elas por isso, sendo que se não se tivesse esse dinheiro, não haveria tal distinção. Ser-se rico é pior do que ser-se de direita. Ser-se rico é só se preocupar consigo e com o seu próprio conforto e nunca se preocupar com os outros. Ser-se rico é ter-se uma empregada doméstica ou secretária sem as quais não se sabe fazer absolutamente nada. Ser-se rico é nunca utilizar os transportes públicos e só andar de carro. A tudo isto eu chamaria manifestações de riquismo, novo ou velho. A tudo isto o João Miranda chamaria “liberdade individual”, provavelmente o mais burguês de todos os valores.
Publicado também no Cinco Dias.
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